A glória e seu cortejo de horrores - Fernanda Torres

MUITO BOM: um personagem que seduz o leitor em uma história ao mesmo tempo meio alucinante, irônica e engraçada, que traz em seu bojo muita cultura brasileira e universal

Fernanda Torres - A glória e seu cortejo de horrores, SP, Companhia das Letras, 2017, 216 páginas

O que é que esse livro tem? Na capa ele tem Helena Ignez e Paulo Villaça numa foto do indiscutível clássico O bandido da luz vermelha (1968), dirigido por Rogério Sganzerla, dos bons tempos do cinema nacional.

Depois e até o final temos a história curiosa, insana, doida e digna de outros adjetivos similares do personagem central do livro, Mário Cardoso, um galã do período áureo das telenovelas brasileiras e agora um decadente, perturbado e endividado ator teatral metido a levar Shakespeare para as massas.

E junto com a história de Cardoso, temos citações, destaques e ou referências a muita gente boa. Como Shakespeare, especialmente a três de suas peças mais notáveis: Rei Lear, Hamlet e Macbeth, com tradução de Millôr Fernandes majoritariamente;

Bertolt Brecht e excertos de O senhor Puntila e seu criado Matti, também traduzidos por Millôr Fernandes;

Tchekhov comparece aqui e ali com suas obras-primas A gaivota, Tio Vânia, O jardim das cerejeiras e As três irmãs;

Guimarães Rosa e seu Grande Sertão: Veredas, e tome Riobaldo e Diadorim num (fictício) delírio cinematográfico da obra que vai parar em Cannes e fazer sucesso em toda a Europa;

Nelson Rodrigues, que tinha mesmo de estar presente em um livro como esse, passado entre as décadas de 1960 e as seguintes, quanto ele teve vários de seus textos montados nos palcos ou adaptados para o cinema;

Plínio Marcos e toda a carga dramática de Navalha na Carne, sua célebre peça encenada pela primeira vez em 1967, apresentando os inesquecíveis personagens do cafetão Vado e da prostituta Neusa Sueli.

Também não poderia faltar, claro, a Rede Globo de Televisão e suas telenovelas que atingiam picos de 90% da audiência, pararam o país durante muitas noites em muitos anos, além de certa fauna humana carioca bastante conhecida, composta especialmente por favelados, hippies, músicos, atores, cineastas e intelectuais, muitos desses que até pouco tempo atrás batiam palmas para o sol poente no Leblon...

Depois temos ainda, porém mais recentemente, a Rede Record de Televisão e suas telenovelas bíblicas, onde um dia o galã Mário Cardoso também vai trabalhar depois de ter esnobado a Vênus Platinada do Jardim Botânico, não ter conseguido nela voltar a se apresentar em novelas com sucesso, e se dado mal com seu teatro shakespeariano.

Claro que não me lembro de tudo que li e me impressionou favoravelmente, mesmo que tenha sido uma leitura recente. Não fiz anotações, escrevi esses comentários de memória, mas sei que a glória e seu cortejo de horrores, frase que Fernanda Torres, além de autora, também atriz notável de filmes, peças e séries de televisão, diz ser de sua mais que célebre mãe, Fernanda Montenegro, ainda não parou de se apresentar. Não vai parar.

Então, mês passado (setembro de 2024), a autora apareceu na ONU, pois estava em Nova York para o lançamento do filme de Walter Salles, Ainda Estou Aqui (2024), bastante comentado no recente Festival de Cinema de Veneza e que alguns acreditam que pode ser premiado no próximo Oscar, até ela mesma como atriz principal. Mas noutro caso, Vini Júnior, mesmo merecendo, também não ganhou ontem (28/10/2024) a Bola de Ouro na França, e isso não tem nada a ver com o livro, claro, apenas com a glória.

De volta à ONU, lá estava a conhecida atriz e escritora, de olheiras profundas e olhos esbugalhados, conversando animadamente com seus gloriosos amigos Lula e Janja da Silva, personagens mais que dignos de figurar em qualquer cortejo de horrores brasileiros. Todos os três admiradores do outrora “sensacional” ministro dos direitos humanos Sílvio de Almeida, aquele mesmo que em pouco tempo se tornou mais célebre ainda pela tentativa de criação de uma nova modalidade de assédio sexual, o assédio estrutural. Personagem real tão decadente quanto o fictício Mário Cardoso. Noves fora, o livro da Torres é muito bom.