O HOMEM QUE ACORDOU SOZINHO NA TERRA, DE LUCAS CASSULE | RESENHA LITERÁRIA

1. FICHA TÉCNICA

Título: O HOMEM QUE ACORDOU SOZINHO NA TERRA

Autor: Lucas Cassule

Edição: Ésobrenós Editora

Ano: Julho, 2024

N° de páginas: 154

Género: Narrativo / Romance

1.1. DADOS CATALOGRÁFICOS

Lucas Cassule é um escritor angolano que dispõe apresentações, tanto no âmbito nacional como no internacional, pelos seus feitos na literatura angolana (o que lhe dá ênfase nos marcos da literatura africana), autor de vários livros dispostos no formato impresso e no digital.

Em “O Homem Que Acordou Sozinho Na Terra”, romance publicado a 6 de Julho de 2024, com a Ésobrenós Editora, no dia do seu aniversário, o Discípulo de Pepetela eleva várias questões que sempre fizeram parte do viver, o sentido da existência. Somos atraídos por uma capa negra, um globo segurado por mãos femininas, que tão logo activa-nos os sentidos, uma mensagem a ser descodificada.

2. ANÁLISE E RESENHA

O homem é um animal social, nunca vive distante de outros, apesar das mazelas, apesar da deidade da vida, logo, a perspectiva centra-se, de uma ou outra forma, também na busca de uma lógica, algum idealizar. Como seria, achar-se sozinho na Terra, um mundo onde, talvez, é possível fazer as próprias regras, criar um império sem adversários, governar-se, conformar-nos-íamos ou buscaríamos por respostas, aceitaríamos ou negaríamos à existência?

Misticismo, loucura, completo suspense, adopção ao fantástico, porém, factualidade humanitária, questionamentos sobre a existência, o seu sentido e dilema, a luta pela sobrevivência, a busca pela identidade, a busca de uma tradição qualquer, um costume que valha, o quase pós-apocalíptico explorando complexidade de assuntos paralelos, uma narrativa marcada pela peculiaridade, ironia, paragens bruscas para o diálogo interior, delimitação aberta. Diferente do fazer literário do Batman da Literatura Angolana conhecido, “O Homem Que Acordou Sozinho Na Terra” é um romance onde impera a miscigenação de ideias e enigmas que, quando parecem calar-se, quando a busca da resolução do inquérito está a metros do entendimento, brota uma nova esfinge, um novo espinho entre as rosas quase imaculadas. A sensação de quase nada corroborando, labirintos, caminhos cruzados, sentidos contrários, os inúmeros talvez (es), são experimentadas durante a jornada.

I. Organização da obra

Desde o prólogo da obra, somos logo atraídos por um mar de incertezas, muito antes, o escritor Sérgio Fernandes não poupou no prefácio da obra, atiçou a chama, deixando fumaças abanadas às nádegas encobertas pelas vestes posteriores do livro, que convidam o leitor para o desflorestamento. Um total de 8 capítulos, por assim dizer, fazem a obra, quando apartado o prólogo e o epílogo.

No desenrolar do enredo, através da jornada de Indira (Hindi), outrora fragmentada ao comandante Waldemar, eleva-se as filosofias do autor sobre o sentido da existência e do viver, somos convidados a meditar sobre o dilema do existir, em especial, aquando uma perda irreparável, quando se sente o peso da responsabilidade sem ter com quem compartilhar e o gosto da derrota, a solidão interior, mesmo quando se está rodeado de pessoas. Talvez o maior inimigo do homem seja exactamente aquilo que está além de suas perspectivas mentais e intelectuais, como o arqui-inimigo da vida, por exemplo, que embora se passe por uma experiência com a ida eterna de alguém, o mesmo vazio se mantém, aquilo que não se consegue compreender, por mais que se esteja no mesmo papel bordado ao ser e estar, nestas tendências, a liberdade pode ser um fardo que a tudo sucumbe, rodeado do tudo e do nada.

II. Relação autor-leitores

Em “Teoria da literatura: uma introdução”, Terry Eagleton cita que, «A distinção entre "fato" e "ficção", portanto, não parece nos ser muito útil, e uma das razões para isso é que a própria distinção é muitas vezes questionável. (...) Além disso, se a "literatura" inclui muito da escrita "fatual'', também exclui uma boa margem de ficção.» [1983, pág. 13], considerando tais perspectivas numa mediação sobre o dilema do existir presente na obra de Lucas Cassule, abaixo convém-me citar algumas das lições tidas:

– Riqueza alguma supera a dor do abandono e da solidão interior, da perca da fé e da esperança ao recomeço;

– Às vezes, ignoramos a voz da sabedoria, cegando-nos dos factos, mesmo quando parecem evidentes e, por conseguinte, sofremos as consequências não imaginadas;

– Uma acção mal pensada pode vitimar dezenas de vida, destruir sonhos, cavar o abismo [na alma], e o arrependimento é tardio;

– Tudo acontece por um propósito, eis-nos a tremenda verdade, porém, ainda podemos moldar alguma coisa, basta tomar decisões diferentes e ser sábios nas escolhas;

– O destino, a fé e a esperança são três sentidos diferentes, mas caminham juntos como irmãos, tudo se experimenta da visão que se tem da vida; o destino raramente é inevitável, é verdade, mas a fé pode ser um combustível para acender uma chama diferencial, as perspectivas aliadas à esperança;

– A vida faz sentido apesar de tudo, encará-la com determinação, foco, é eficaz para manter o equilíbrio, pois, enquanto houver, os problemas estarão à espreita, há um lugar onde há, mas ninguém quer morar lá;

– Aceitar a vida com fé, foco, perseverança, resiliência e determinação, torna-se o remédio para a superação e renascer mais forte e erguido.

Haveria uma vida sem passado, sem memórias, sem história, sem costume, sem tradição, enfim, uma vida inventada? Na medida que o enredo avança, a moldura se constrói, o tempo e o espaço se confundem, o ambiente muda e acção ganha vida à uma viagem ao desconhecido, ainda que não se queira, é acompanhado por qualquer plano mental arquitectado pelo leitor, uma experiência que por mim foi vivida no processo da leitura, ocorrência espontânea.

III. Sentido da obra

O mundo sempre foi marcado pela deidade, entre o belo e feio, bom e mau, vida e morte, paz e guerra, vitória e derrota, levantar e cair, riso e choro, alegria e tristeza, nesta coloração entre o verso e o inverso, questões calam-se, enigmas surgem, às vezes, o próprio homem não consegue dar total satisfação, neste paradoxal intento, somos obrigados a tomar um partido, um olhar equilibrado, a busca de algum horizonte próximo, respostas. A chuva não para de cair, quer dizer, na estação justa, o inverno vem, a primavera vai, os galhos crescem, quebram-se, os pássaros homenageiam a natureza com o seu piar, a canção da harmonia e desarmonia toca algures, neste ritmo tudo avança, ora rápido e ora lento, ora forte e ora fraco, ora alegro e ora moderado, a cada reflexo a vida avança, de todas as formas, o homem brinda-se com a vida e molda o viver.

Nesta senda sobre o incompreensível, o que não se pode controlar, Nancy Sherman, filósofa americana que estuda a influência do pensamento estóico sobre a ética militar, cita, “Deixe para trás as coisas que não estão sob o seu controle e tente trabalhar duro naquilo que você pode controlar.”, quando reflectido à citação de Epíteto, “Você não é aquilo que finge ser. Então, reflita e decida: isso é para você? Se não for, esteja pronto para dizer: para mim, isso é nada. E deixe o assunto de lado.”, de um outro modo, é a resposta plausível para um inquérito calado, aceitar as coisas que estão além do nosso controlo e que já aconteceram.

A obra está repleta de simbologias, o que parte desde a capa, como parte do acerto do quebra-cabeça, a compreensão do enigma. O fardo do mundo nas mãos a contar, as cores negras, as mãos femininas, choca-me o trágico-dramático tom [da obra], o sabor de sangue que permeia, o sentido do luto impiedoso, mas encanta-me a complexidade dos actuantes, em especial a menina Nyeri, que embora pequena, demonstra uma inteligência fora de série, amor pelos livros, deixando a desejar. O Discípulo de Pepetela traz uma obra profunda, através de sua dimensão psicossocial e filosófica, talvez o categorizemos também como romance filosófico, por congregar o dilema do existir, do ser e estar, quando não se dá a oportunidade de recomeçar, quando não se permite remendar a alma, quando se permite que o passado passado se mantenha vivo e continue intenso a cada dia, apesar de vários anos volvidos.

Eagleton [Teoria da literatura: uma introdução, 1983, pág. 14] cita que, «Talvez a literatura seja definível não pelo fato de ser ficcional ou "imaginativa'', mas porque emprega a linguagem de forma peculiar.», num tom analítico reflectido à obra, o leitor é desafiado a enxergar o seu âmago e encontrar respostas das questões que há tempos afligem o ser humano, paralelamente, as que perduram, por que estamos aqui? Por que estamos vivos, quando outros partiram estando na mesma situação? E se desse para fazer diferente, como seria? Acho interessante citar a filosofia guardiniana da pessoa, “o carácter básico desta nova forma de vida está determinado, se muito não me equivoco, por dois elementos. Um deles é positivo: a força ascendente da personalidade que se autoafirma e da vitalidade que tudo penetra; e outro negativo: a falta da experiência da realidade.” (GUARDINI, Romano, Las etapas de la vida, Ediciones Palabra S.A., Madrid 2006, pág. 65).

E agora, olhando o sentido amarelo do livro, ainda há esperança, basta permitir-se abraçar e prosseguir com a fé tal como cita a dedicatória: “Aos que já se sentiram abandonados. A quem tenha perdido a fé também.”

“O Homem Que Acordou Sozinho Na Terra” é uma obra pertinente, rodeado pelo paradoxal isto e aquilo, um romance que desafia o leitor, de tirar o fôlego, não se trata de simplesmente um entretenimento. Super recomendado!

Sandro Sebastião
Enviado por Sandro Sebastião em 13/10/2024
Código do texto: T8172505
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