Por flechas e versos resistir
por Márcio Adriano Moraes
A resistência cultural e identitária dos povos indígenas é um tema recorrente ao longo da história da literatura brasileira, manifestando-se de diferentes formas e vozes. No épico Caramuru, de Santa Rita Durão, publicado em 1781, somos apresentados à figura de Diogo Álvares Correia, um português que se torna uma ponte entre o mundo indígena e o europeu. A obra, embora escrita sob a perspectiva do colonizador, carrega a narrativa da adaptação e do entrelaçamento cultural, refletindo uma relação complexa entre os indígenas e os colonizadores, marcada tanto pela convivência quanto pela imposição.
Avançando para o século XXI, encontramos em Ay Kakyri Tama – Eu moro na cidade (2013), de Márcia Kambeba, uma reinterpretação e uma ressignificação dessa história. Kambeba traz à tona a experiência contemporânea dos povos indígenas em um contexto urbano, enfatizando a luta pela preservação da cultura e da identidade em um ambiente que muitas vezes tenta apagá-las. Seus versos, impregnados de referências à natureza e à ancestralidade, estabelecem um diálogo com as tradições orais que foram ameaçadas ao longo dos séculos. A obra se torna um manifesto de resistência, em que a linguagem se transforma em uma ferramenta de afirmação identitária, resistindo às narrativas dominantes que historicamente marginalizaram as vozes indígenas.
Em 2022, a pintura Resistir, de Auíri Tiago, complementa essa discussão ao visualizar a luta pela identidade e pela memória coletiva. A obra, ressignificando a bandeira nacional brasileira, mesclando elementos de pinturas rupestres, representa a força da ancestralidade e a necessidade de resistência diante das adversidades contemporâneas. Tiago, assim como Kambeba, desafia a invisibilidade imposta aos indígenas, utilizando a arte como um meio de reivindicar espaço e reconhecimento. A flecha que carrega o nome de Tupã atravessando o Cruzeiro do Sul da esfera azulada é ponta de mira de um povo que se recusa a ser esquecido.
Dessa forma, a intertextualidade entre Caramuru, Ay Kakyri Tama e Resistir revela um panorama em que as flechas do passado encontram os versos do presente, criando um diálogo entre tradições e inovações. A literatura e a arte, nesse contexto, não são meros registros, mas sim ferramentas de resistência que permitem a continuidade de uma narrativa indígena vibrante e atuante. Juntas, essas obras reafirmam a importância da memória, da identidade e da luta por reconhecimento, mostrando que a resistência não é apenas uma questão de sobrevivência, mas uma celebração da cultura em todas as suas formas.