Barba ensopada de sangue - Daniel Galera

Daniel Galera - Barba ensopada de sangue, São Paulo, Companhia das Letras, 2012, 424 páginas

Tem um filme interpretado por Burt Lancaster, The Swimner (1968), ou seja, O Nadador, que no Brasil recebeu o curioso título de Enigma de Uma Vida. Vi uma vez, faz algum tempo, e não me lembro direito da história que contava, mas do clima da fita: começa meio devagar mas depois vai ficando bastante interessante.

Lembrei-me de Enigma de Uma Vida enquanto lia o Barba Ensopada de Sangue, onde pintou o mesmo clima. E também porque ainda que as histórias de filme e livro aparentemente não tenham nada em comum a não ser um nadador, o personagem sem nome de Galera é, sem dúvida, tão enigmático quanto aquele interpretado por Burt Lancaster.

A certa altura do livro cita-se Nietzsche (também tem budismo e outras discussões elevadas mas nada complicadas) que, como se sabe, dizia que a vida não tem sentido algum. Estaria então o nadador buscando algum significado para sua vida – se a vida não tem sentido algum então nós é que temos de dar algum significado para ela - quando se mudou para a pequena Garopaba, deixando a movimentada Porto Alegre para trás?

Ou não era nada disso e ele apenas pretendia viver ali, próximo do mar, nadar, simplesmente isso, como afirma sempre que lhe perguntam sobre sua mudança da capital gaúcha para a cidadezinha catarinense? Ainda que ao longo do livro nos sejam fornecidas várias pistas e também motivos para o comportamento do personagem, quando o livro termina você acaba ficando com uma questão em aberto. Eu, pelo menos fiquei: se o livro continuasse será que o nadador se manteria fiel ao que disse (nas derradeiras páginas), a Viviane - a ex-namorada - ou repensaria suas atitudes, agiria de outra forma então?

Exatamente por não saber como ele pode agir no capítulo seguinte ou na página seguinte, o que irá acontecer na sequência – também por outras questões ou tramas surgidas ao longo da narrativa -, a história fica um tanto viciante e foi um pouco difícil me desligar do livro e acompanhar os jogos e as notícias da Copa do Mundo de 2014 na fase de grupos, tão viciantes quanto. Foi naquela época que li essa história, mais de dez anos passados, portanto.

Conhecia Galera como tradutor (de David Foster Wallace, principalmente), nunca tinha lido nada dele antes mas fiquei agradavelmente surpreso com este livro que descreve Garopaba, reduto de surfistas e pescadores, com detalhes tão profundos que é quase como se você estivesse lá ou estivesse acompanhando tudo como num filme, exatamente conforme alguns leitores também se sentiram, como soube lendo suas resenhas em alguns sites de literatura.

Aliás, o livro todo é assim; é bastante realista sobre tudo o que é contado, mesmo quando alguns personagens falam acerca do avô do nadador, visto por eles como um fantasma vingador, ou quando se mostram adeptos de crendices populares, acreditam que os sonhos se tornam realidade etc., notadamente as mulheres mais simples do local. Parece meio que um estudo sociológico da cidadezinha, com a vantagem de não usar terminologia da disciplina e tampouco aborrecer o leitor.

Filosofia, crendices e religiosidade à parte, em Barba Ensopada de Sangue impera mesmo o realismo: há páginas em que as coisas são descritas ou narradas como se estivéssemos lendo não um livro de ficção, mas um jornal. Como neste trecho em que Galera escreve sobre uma disputa eleitoral na cidade, mais ou menos nos moldes do que ocorria em quase todo o Brasil naqueles longos anos de domínio petista na política:

“Há um certo clima de ameaça no ar. Militantes do Partido dos Trabalhadores circulam no perímetro da praça com bandeiras vermelhas e a troca de ameaças e xingamentos [entre petistas e os opositores] é franca e sem indícios de bom humor.” Daí que essa parecia ser mesmo uma marca dos partidos de esquerda brasileiros, que estariam quase sempre a disseminar a divisão social e a estimular o ódio por onde passavam ou atuavam. Até mesmo como personagens de ficção...