Resenha do livro Tudo é rio

Resenha do livro TUDO É RIO, Carla Madeira

1 – O título: Tudo é rio, intenso, caudaloso – e o sexo também. O sexo faz parte das coisas delicadas, que podem ir do céu ao inferno se o supervalorizamos ou se o subestimamos e o reduzimos ao nível de assunto de somenos importância. O tema exige naturalidade e identificação de tabus e preconceitos para que seu aspecto orgânico, psíquico, não se desvie para uma área superficial.

2 – A autora: Num estilo ousado, inicia com um estilhaço verbal e humano: puta. Essa temperatura de curiosidade se mantém durante toda a trama. Ao final, envolve uma cena fria e emblemática: uma prostituta diante da maternidade, mas que não consegue sentir o paladar desse momento. Num raro gesto de lucidez e generosidade, doa o filho a outra pessoa.

3 – A estrutura da trama: A autora não nos coloca nas mãos um texto linear, vai com critério e sagacidade entregando aos poucos as peças para composição do conjunto literário. Chama a atenção a espontaneidade com que o texto flui em sua estrutura superficial. Na arquitetura profunda vão se abrindo diferentes janelas de reflexões a partir dos perfis humanos, que se interligam de forma engenhosa e ao mesmo tempo leve. Todos os personagens levam o leitor a uma fácil conexão com algum perfil da vida real. Isso confere à leitura doses de afeto, empatia e intimidade com as histórias de vida. O eixo central – sexo, amor – vai se mantendo poderoso nos diferentes campos onde a leitura pousa: carnal, procriador, romântico, cultural, preconceituoso, religioso, triste, alegre, hipócrita, decadente.

4 – Para onde os três personagens principais arrastam nossa reflexão.

*Lucy: traz a lume a questão do trauma, quando ela passa de filha querida a filha bastarda; faz-nos lembrar das adoções mal conduzidas, dos ambientes familiares perversos, do violência sexual doméstica. Um dos pontos mais evidentes está no fato de uma pessoa encontrar, no sexo e no prazer de seduzir sexualmente alguém, o único sentido da vida. Suscita questionamentos: Hoje, - em tempos de vida virtual - como, quantos, até quando Lucy (personagem principal) levaria avante essa sua fixação sexual? O que significou para ela o homem que não conseguiu seduzir?

*Venâncio: Vítima de um lar desestruturado por um pai violento. Esse ambiente familiar hostil desencadeou em seu psiquismo um desejo de amor perfeito, sexo como fator de segurança emocional. Em comum com a prostituta Lucy tinha sobre os ombros o peso dos excessos: ela, sexo doentio; ele, amor doentio.

*Dalva: Tinha equilíbrio afetivo, à semelhança da mãe, tinha propensão a ser feliz. A tragédia que ocorreu em sua vida estava fora de seu alcance. Um azar a vitimou, e o estrago seria maior se ela não fosse tão forte.

4.1 – Para onde nos arrastam os personagens e elementos secundários, no que se refere ao amor e sexo:

- As prostitutas: tristes, sonhadoras com o amor real, igual ao de Venâncio e Dalva. Com sabor de empadinha. Exclusivo e eterno (se não fosse a “carência afetiva de Venâncio).

- Os homens em geral: frequentadores de prostíbulos, em franco contraste com as mulheres rezadeiras, donas de casa, equilíbrio do lar, traídas pelas profissionais do sexo. Talvez um ponto de identidade que une homens do enredo e Lucy seja: o amor da carne, que nasce na superfície e morre na superfície, sem chegar ao coração.

- Francisca: retrata a recaída amorosa por um ex-amor, amor sublimado que não resiste ao amor contido. Nela vê-se o instinto materno da mulher solteira.

- O pai de Venâncio: violento, foi origem de desestrutura familiar e sérias sequelas afetivas do filho.

- O pai de Dalva: não fosse a força conciliadora de Aurora, a família poderia não ser tão bem estruturada, os caminhos poderiam ser diferentes. Anteviu a tragédia amorosa de Dalva, mas tragédias não se controlam, assim como a vida. E se o casamento de Dalva não se concretizasse, e se ela morresse por amor a Venâncio? Tudo na vida é rio, caudaloso, flui.

- O prostíbulo: nos remete a um espaço de destaque há algum tempo. Pouco condizente com a sociedade atual; doenças transmissíveis; mulheres menos submissas; relações mais voláteis, sim; mas mais honestas, francas. Figura arquitetônica em decadência, porém ainda respiramos o oxigênio desses locais.

- O espaço e o tempo: Tempo cronológico breve. O livro explora os espaços humanos, transita mais nos terrenos invisíveis. Externamente, os eventos ocorrem basicamente no prostíbulo, interior dos lares - se estendendo eventualmente a ambientes de trabalho, igreja, rua.

Maria do Carmo Fraga (Mariana Mendes)
Enviado por Maria do Carmo Fraga (Mariana Mendes) em 22/09/2024
Reeditado em 22/09/2024
Código do texto: T8157197
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