A oceanidade na poesia de Lucas de Matos
Recebi o exemplar de “Antes que o mar silencie”, de Lucas de Matos, com o autógrafo sobre um beijo político em alto mar. A imagem me remeteu a um encontro que tive com o mar de Itapoan, nos idos anos 1990, quando cheguei em Salvador, atraído pelo mar e em cuja beleza me traí, ‘morri’ afogado. Salvo por pescadores, ressuscitei e aqui estou para contar a história e perguntar quantos poetas cabem num oceano.
E antes que o mar silencie meus olhos, ouvidos e pele, mergulhei no mar de Lucas, esse poeta que dança nas marés.
Começo ao som de “O mar”, de Dorival Caymmi... Mergulho no livro. E degusto, com gulodice, o projeto editorial, as palavras aladas, as águas salgadas e toda a fauna-flora marinha do poeta, num balançar de dengo durante a leitura. Ora me afogo, descanso no fundo, no lodo de onde brota a vida, ora flutuo na crista das ondas.
“Como uma onda no mar” (Lulu Santos), sigo na leitura e no movimento, de idas e vindas das marés de poesia, e passo a ouvir “Não adianta eu sou do mar”, de Armandinho, que me diz para entrar no mar só se souber a força que ele tem. E que o futuro é preservação. E é nesse embalo que singro e prossigo no livro-mar de Lucas de Matos. Degusto o “azul da cor do mar” (Tim Maia) e sinto o que Lucas me sussurra nessa obra, cuja capa já é parte do oceano, onde mergulho sem escafandro ou cilindro de ar. Respiro como peixe, sorvendo versos, rimas, sonoridades de conchas e corais.
Meu coração repercute. Como o coração do poeta. Vibra vida e utopias em minhas veias. Danço o corpo tambu e o balé ancestral, num garimpar dialético, na palavra nitroglicerina. Na régua poético-afetiva, que aflige na criação. Na dosagem certa de cada letra, cada quebra de linha, cada entre – linha. Sigo no alinhavado de sentidos e na costura afetiva e curativa das palavras. Na luta pela regeneração do mar-vida, do mar-estrada, do mar-habitação, do mar-terra-mar-amor, do mar-preservação.
Em alguns momentos do livro “o mar serenou” (Clara Nunes), quando a poesia samba na beira do mar... e me embalo no batismo, na lição do sol, na pureza, na água de cachoeira.
Mas água não respeita barreira. Arrebenta, em quedas bruscas ou corredeiras, palavras-lâminas, que abraçam e que também ferem. Desperta o poeta do seu privilégio, por mais secreto que seja, para a integração natureza-gente-bicho-terra-mar.
Na caixinha de música de “antes que o mar silencie”, incorporo outras sonoridades, algumas silenciadas, outras vibrantes, e sigo no desejo: “Quero ser feliz também” (Natiruts) peço agô e bença e recebo um verso: “e quando você pensar em mim, eu já cheguei”...
Volto a ouvir Caymmi, “o pescador tem dois amor, um bem na terra, um bem no mar...”, realizo o reencontro dos meus dois amores, o mar e a poesia: com prece e intuição, conselho e compromisso, oráculo e doação... singrando, nesse veleiro que bate asas. Me acalmo, recalculo as rotas, e permaneço atento aos versos.
Rumo ao porto, “Rimas de ventos e velas”, da música Porto Solidão, de Jessé, me acompanham. A turbulência e as palavras e o cais e a areia, reconexão com o mar. E com a poesia. Pois na praia de um poeta sempre “um livro estará à espera”. E antes que o mar silencie, me acalmo e fico “na beira do mar” (Timbalada), onde saúdo Lucas de Matos e às águas. Ora iê iê, Odoya...
Foto: Lucas de Matos e Valdeck Almeida (selfie)