Contos peculiares no universo da srta. peregrine
Continuando minhas leituras de Ransom Rigggs, apresento nesta resenha o livro Contos peculiares (Intrinseca, 2016). Não é sua principal obra, mas ainda assim, a meu ver é uma obra significativa e de leitura agradável. Riggs é o autor da trilogia “O lar da Srta. Peregrine – para crianças peculiares”.
O ‘Lar da Srta. Peregrine, vol. I, foi adaptado para o cinema, mas não resultou num filme que fosse um sucesso de bilheteria, ou que tenha provocado uma atenção especial sobre a temática dos peculiares, e, não foi suficiente para provocar ou mesmo criar uma franquia (tal como ocorreu com Harry Potter por exemplo).
Em geral sou bastante crítico quanto aos resultados da transposição de livros para a telona (o cinema), pois isso resulta em muitos cortes, mudanças de sequencias e, no limite, interfere na evolução dos personagens e da própria trama. Coisas semelhantes aconteceram com franquias famosas, tais como A identidade Bourne, O Hobbit e mesmo Os Vingadores.
Voltando ao livro Contos peculiares constato uma ampliação do imaginário sobre o mundo e a cultura vistos pelos peculiares. Para o leitor deste comentário, e que por acaso ainda não esteja familiarizado com esse universo, vai algumas informações:
a) Peculiares são seres humanos que constataram durante sua existência uma diferença em sua condição humana, que se manifesta por meio de comportamentos e/ou capacidades que não fazem parte do que é normal para a maioria dos humanos. Neste universo existem humanos que se tornam uma ilha, pessoas que ao se identificarem com um animal passam a ser desta espécie, pássaros que se tornam humanos e vice-versa, pessoas com super força, invisibilidade, capacidade de prever ou antever o futuro etc. A peculiaridade existe, mas ela não é uma anomalia ou distorção do humano, ela é uma das possibilidades que a própria humanidade carrega em si mesma.
b) O convívio entre humanos - ditos normais – e os peculiares é marcado pela ambiguidade e, em geral, pela tentativa de explorar o ‘dom’ de um peculiar em benefício de interesses nada edificantes. Não é incomum que os peculiares sejam vistos como monstros ou aberrações. Fato este que provoca perseguições, assassinatos e no mínimo o isolamento de peculiares em comunidades que evitam o contato com os demais humanos.
c) Para Riggs os peculiares estão atualmente em declínio, seja enquanto uma população que se reduz, seja porque sua própria cultura (usos, costumes, folclore, referências geográficas e urbanas...) não esteja se mantendo. Mesmo disputas internas entre os peculiares – tal como aparece na trilogia O lar da Srta. Peregrine – contribuíram para que esse cenário de decadência se intensifica-se.
No livro Contos peculiares, encontramos um fragmento do vasto folclore dos peculiares. São pequenas ‘histórias’ transmitidas pela oralidade e, que contadas ao pé da lareira (nos países de clima frio) ou mesmo em volta de uma aconchegante fogueira (nos lugares mais tropicais), alimenta a imaginação, tanto das crianças quanto dos adultos que contam e/ou ouvem essas narrativas.
Destaco que as aventuras e as desventuras vividas por peculiares podem advir dos humanos tidos como normais (ver o conto O garoto que podia controlar o mar), mas também de outros peculiares, tal como acontece no conto ‘Os esplêndidos canibais’. O conto que encerra o livro (A história de Cuthbert) é uma utopia de paz onde os animais peculiares são protegidos por um gigante (uma espécie humana em extinção), e aponta para um futuro onde a peculiaridade só sobrevive em relativa paz nas FENDAS – isto é lugares criados e mantidos por matriarcas, que são inacessíveis a quem não tem um mapa ou não seja peculiar.
Concluindo posso afirmar que é bem atual – para toda a humanidade – o desafio de uma convivência com todas as diferenças que estão presentes no ser humano e nas inúmeras culturas por ele produzidas. É inaceitável que ainda floresçam entre nós teorias e práticas racistas, pois somos uma única humanidade, somos todos e todas homo sapiens. Mas também, segue sendo inaceitável preconceitos e discriminações as mais diversas, tais como as que ocorrem por etnia, religião, opinião política e ideológica, por características fenotípicas (cor da pele, cabelos, altura, peso...), gênero (sis, trans e mesmo dentro do que é visto como heteronormativo).
Boa leitura!
(originalmente o texto já esteve no Face)