As memórias do livro
Acabo de ler um livro muito interessante e também instigante. Geraldine Brooks escreveu "People of the book, que no Brasil foi traduzido por As memórias do Livro: romance sobre o manuscrito de Sarajevo (Ediouro, 2008). Além da narrativa ser agradável, cobrindo em torno de 500 anos de história dos judeus na Europa - do fim da idade média até 2000, a trama gira em torno de uma Hagadá de páscoa e os acontecimentos relativos a trajetória deste livro e do processo de sua restauração/conservação.
Uma informação importante - para leitores que como eu não são judeus - as hagadás são narrativas judaicas que partem das Escrituras, mas estão marcadas por livre interpretação e mesmo pela fantasia daqueles que as criaram. Muitas delas fazem parte da tradição judaica e estão presentes no Talmud e na Mishná. Sendo contadas onde existirem comunidades judaicas e também suas sinagogas.
Há muitos aspectos interessantes no livro, mas vou destacar apenas 3 deles. 1) Descreve em minúcias o ofício de restaurar/conservar livros antigos. O cuidado com o manuseio do livro, a atenção as texturas presentes nas tintas e os materiais utilizados para a obtenção da cor, revelam complexidade e também os valores presentes neste processo. Respeito e até mesmo uma certa reverência a essa forma de memória e expressão de nossa humanidade.
2)A paixão pelo livro não depende de alguém ser judeu, cristão ou muçulmano, mas ao fato de que aquela obra existe e é expressão de nossa humanidade. A 'história' da Hagadá de páscoa desde sua criação até o momento da restauração/conservação está profundamente marcada pelos encontros e desencontros entre etnias, religiosidades e culturas - presentes em judeus, cristãos e muçulmanos. A autora descreve autos de fé - inquisição, a convivência e as contradições presentes na relação dos cristãos junto aos judeus. Também mostra aspectos de 'diálogo' e encontros positivos.
3) A autora oferece ao leitor (numa viagem de 500 anos) cenas do cotidiano, onde judeus, cristãos e muçulmanos ao viverem o que lhes é próprio, se aproximam e colaboram para que o livro (a Hagadá) não se perca ou seja destruída. Sendo o principal cenário descrito a cidade e Sarajevo - tanto em seu passado multiétnico, quanto após a guerra no final do século XX.
O livro de Brooks é uma obra de ficção, mas há inúmeras referências que efetivamente são históricas (tal como o Diretor do Museu que durante a 2ª guerra mundial escondeu a Hagadá, etc).
Recomendo, com certeza, esta está leitura a quem tenha interesse em história judaica, quem gosta de ficção com conteúdo histórico e, para qualquer pessoa que se interessa por situações de diálogo entre culturas e religiões diversas. Afinal, nós brasileiros somos fruto da diversidade étnico-cultural e, mesmo em meio à grandes contradições em função da desigualdade e do racismo estrutural, a cada dia reencontramos sinais de que tudo o que vivemos e somos é parte de nossa condição humana.
(originalmente postado no Face)