A máquina do poder, por A. Higon

 

Título do original francês: "La machine du pouvoir". Prêmio Júlio Verne de 1960. Editora Livros do Brasil (Lisboa, Portugal), 1964, Coleção Argonauta, 79.

 

Tenho a impressão de que o autor desse livro enredou-se em suas próprias ideias e ficou em palpos de aranha para chegar a uma solução. Trata-se de um verdadeiro "angu de caroço", essa novela francesa.

É verdade que A. Higon consegue criar um ambiente futurista a princípio convincente, com a trama concentrando-se em torno de Than Horn e da perseguição de que ele e Ângela Dari são vítimas, numa civilização aparentemente dominada pela máquina. Com o desenrolar da história acontece tanta coisa que não dá tempo de digerir e o enredo vai ficando mais confuso a cada página. A mensagem acaba sendo iconoclasta, inconvincente, algo retrógrada.

Num futuro distante a humanidade construiu a Federação do Sistema Solar e entregou o seu próprio destino ao julgamento da Máquina do Poder, construída pelo engenheiro Diogene Roven. Através de um complexo sistema de notas a Máquina seleciona o Presidente e um grupo de privilegiados, os "challengers". Tal sistema não eliminou a politicagem nem evitou trapaças pois, curiosamente, por trás (ou por dentro) da Máquina do Poder existiam diversas personalidades eletrônicas, como o cérebro M.265, encarregado dos cálculos, e que falsifica o teste de Horn, guindando-o à Presidência. "A Máquina vai aperceber-se", objeta Than Horn. Ao que M.265 responde: "Nao pode aperceber-se. ELA NÃO SABE CONTAR" (sic). Assim, graças à burrice matemática do cérebro que dirige o mundo, cria-se uma situação que desencadeia um conflito espantoso entre várias facções humanas e mecânicas e que culmina numa carnificina cibernética. No meio de um horror sem fim, com o anti-heroi Than Horn fugindo de tudo e já sem compreender coisa alguma, ainda vem o cérebro telepata M.721 chamá-lo várias vezes para dizer: "Than Horn, escute-me e não receie nada!" (grifo meu). Aliás o M.721 tenta assassinar Than Horn...

Existem originalidades na novela. O mundo imaginado é tão materialista que o nome de Deus é considerado proibido e assinalado com reticências, voltando a ser permitido com a destruição do sistema. Flores flutuam por toda a parte. Paris é apenas um bairro da cidade de Nova Europa, um bairro com oito milhões de habitantes. Como na obra "Nós" (ou "A muralha verde"), de Efgeny Zamiatin, os cidadãos são identificados por números: Than Horn é o número 264.287.516.9xy.

Entretanto o número de conflitantes é excessivo. No plano humano W.J. Hiexear, Kangen, Hiselentone, John Gonzales, o Marechal Yang-Ti-Pieh, Strogoff e outros difíceis de memorizar. A gente perde logo o interesse pela identificação dos personagens, meio perfunctorios todos eles. São, além disso, repetitivos. Quando Than Horn, por exemplo, pergunta ao General Nysters por três sujeitos diferentes, recebe três vezes a mesma resposta: "Morreu. Não sabia fazer a guerra. Era um traidor." Poderia citar outros exemplos.

Este romance ganhou o Prêmio Júlio Verne de 1960. Apesar de suas qualidades, ressente-se de uma grande falta de verossimilhança. A ideia dos supercomputadores que conduzem a humanidade aparece em muitas histórias, de autores como Van Vogt, Yves Dermeze, D.F. Jones e Isaac Asimov. O que eu encontrei de melhor nesse gênero foi "Inconstância do Amanhã", de F.G. Rayer (volume 7 da Coleção Argonauta), com a genial criação da "Mens Magna". Quanto a A. Higon, parece não conhecer muito de informática, como se nota pela ausência de jargão especializado. A Máquina do Poder, porém, é tão avançada que consegue conversar de maneira bastante humana: "Você é-me simpático (sic), mas a minha Lei interior não me permite ajudá-lo, nem, tampouco, trapacear em seu favor".

O verdadeiro herói da história (onde a jovem rebelde, Ângela, acaba revelando muito pouca iniciativa) termina sendo o dissidente Robert Marlin que, diante do interrogatório de um tanque-robô assassino, prestes a mandá-lo executar e que lhe indaga a identidade, responde: "Não sou ninguém". Mecanicamente perplexo o robô manda liberta-lo, já que não havia ordem de deter "Ninguém". Creio que essa é a melhor passagem do livro.

Resumindo, "A Máquina do Poder" é um romance de certo nível, com estilo bem francês (construção de um mundo estranho e bem definido, problemas eminentemente políticos) e que, infelizmente, degenera num exagerado vale-tudo.

 

A. HIGON (Albert Higon) - pseudônimo de Michel Jeury, nascido em 1934 e que, segundo Roberto Nascimento ("Quem é quem na Ficção Científica: a Coleção Argonauta"), " é considerado o escritor francês que lidera no gênero" - o que é difícil de aceitar.

 

Rio de Janeiro, 29 de março de 1992.