A chave - Junichiro Tanizaki
Ótimo romance japonês: sexo, mentiras e fotografias combinados numa trama engenhosa
Junichiro Tanizaki - A chave, São Paulo, Companhia das Letras, 2000, 136 páginas
Professor universitário cinquentão (personagem sem nome) é casado com Ikuko, cerca de onze anos mais nova. São pais de Toshiko, que tem como pretendente o jovem Kimura, também professor universitário. O casal se encontra em crise porque o professor não consegue mais satisfazer a mulher na cama com a intensidade que ela deseja. Ikuko, que se revela uma mulher lasciva, nunca se sentiu muito bem como sua esposa: tolera o marido, mas não o ama verdadeiramente, o casamento foi arranjado pelos pais. No primeiro dia de um ano não mencionado (possivelmente entre 1956 e 1958) o professor faz algumas anotações num diário que vem mantendo há tempos, registros esses que continuarão a ser feitos por mais alguns meses, até junho, precisamente. Tudo o que ele anota tem a ver com a crise em seu casamento. Em junho o caso terá seu desfecho...
Isso é um resumo rasteiro de A Chave, de Junichiro Tanizaki (1886-1965), autor japonês dos mais interessantes do século XX. Tanizaki retratou muito bem a ocidentalização de seu país em Amor Insensato, Companhia das Letras, 2004, livro imperdível. Já de início o professor lê Santuário (1931), conhecida obra de William Faulkner sobre o sequestro e estupro de uma jovem no Mississípi. Depois temos Ikuko, Toshiko e Kimura indo ao cinema ver Sabrina (1954), filme romântico dirigido por Billy Wilder e estrelado por Audrey Hepburn, Humphrey Bogart e William Holden. O ator preferido de Ikuko, no entanto não é Bogart nem algum galã japonês, mas James Stewart. A filha do casal estuda francês. The New York Times Book Review diz que A Chave é “Um romance sério e, ao mesmo tempo, escandaloso.” Não há exagero nisso: além do refinado erotismo japonês, Tanizaki traz para essas páginas um clima de permanente tensão sexual: se não há nada explícito, todavia não faltam ciúmes exagerados, exibicionismo e voyeurismo.
Durante uma cena em que Ikuko desmaia na banheira após embriagar-se (o marido frequentemente a estimula a consumir álcool), já que ela aprecia beber, depois de retirá-la da água ele permite que Kimura o ajude a enxugá-la, mas somente a parte de cima do corpo, bem entendido. Mais à frente vai pedir ao rapaz que revele em sua casa e amplie as fotos que tirou da mulher nua, sem ela saber (ou fingindo não saber, como o marido suspeita a certa altura). O objeto do titulo diz respeito à chave de um móvel onde o professor tranca seu diário no escritório da residência. Nele estão registrados seus desejos e fantasias sexuais, que a partir de certo momento ele espera que a mulher tome conhecimento e assim a paixão entre ambos reacenda, esquente de novo: é no que ele acredita piamente. Mesmo tendo trancado o diário a chave ele facilita as coisas para que a mulher tenha acesso às anotações, pensa que ela poderá lê-las com interesse, saber com que intensidade ele continua a desejá-la.
De fato, isso acontece, mas somente em parte: em vez de se sentir mais motivada para o sexo com o marido, Ikuko também inicia um diário no mesmo mês de janeiro, coisa que o professor ignora a princípio, depois acaba descobrindo. A Chave é um romance totalmente epistolar, com dois narradores: como numa espécie de jogo, a cada entrada do marido em seu diário, quase sempre se segue uma da mulher no dela. Muitas vezes dando sua versão daquilo que o marido contou, outras vezes acrescentando dados novos ao que já sabemos ou inserindo novas informações. E assim a história vai avançando: vamos conhecendo mais peculiaridades dos quatro protagonistas, como se comportam, como pensam, sentem as coisas, o que esperam.
Aos poucos vemos também que Toshiko não parece estar totalmente enamorada por Kimura, com quem o pai gostaria que casasse. Quem se sente bastante à vontade com ele é Ikuko. Percebendo que o rapaz agrada à mulher, o próprio professor se indaga por qual das duas Kimura realmente está apaixonado. Prefere que seja pela mulher, porque assim pode “ter ciúmes até enlouquecer os sentidos”, anota certa vez. Ikuko não nega que Kimura lhe agrada: não que ela tenha vontade de ter relações com ele, mas gostaria de ver seu corpo, confessa um dia. Toshiko, que parece ser a pessoa mais sincera dos quatro (ou a única que parece ter alguma ética), observando o que se passa na casa, pede aos pais permissão para se mudar. Quer alugar um quarto na casa de sua professora de francês, que cobraria um valor módico dela; ali poderá ter mais sossego para dedicar-se aos estudos, é o que ela alega. E se muda para lá. Mas também pode estar se mudando por outra razão...
Vemos que o professor não se vale apenas do ciúme como o combustível que pode ajudar a trazer a mulher de volta para ele com ardor. Também usa outros meios para alimentar sua libido: “abusa de remédios, usa drogas, recorre às fotografias eróticas que tira da mulher depois de embriagá-la”, entre outras coisas. Como já foi dito, não fica totalmente claro para ninguém se a mulher realmente está dormindo quando ele a fotografa nua ou se ela apenas simula isso, assim participando do jogo neurótico do marido. Desse modo, pairam certas dúvidas sobre algumas (ou muitas, depende) afirmações do casal, ainda mais que agora a presença de Toshiko, que parece ser a personagem mais equilibrada do quarteto, se faz mais rara em cena, mesmo visitando a casa paterna quase que diariamente. Tanto o marido quanto a mulher, com seus estranhos comportamentos, crescem mais ainda como personagens, tornando-se para o leitor figuras extremamente interessantes de se acompanhar. Tanizaki, como mestre que é, sabe como manter o leitor sob curiosidade e mesmo tensão, a imaginar coisas e criar intensas expectativas para o desenlace, o final. Que irá se revelar surpreendente, como certas histórias policiais da vida real e da ficção.