Entre a faca e a forca um céu de fitas
por Márcio Adriano Moraes
A lâmina cortante de Torto arado traz reflexões em torno da ancestralidade, da condição da mulher, da resistência quilombola, da preservação de uma cultura e sua espiritualidade... a forca sufocante do Romanceiro da Inconfidência tira a asfixia das vozes ocultas, relendo a história, refletindo sobre justiça e injustiça, trazendo um olhar poético e sensível de um movimento de liberdade... e a sonoridade e o ritmo de Montesclareou e Catopezara enchem de fitas o céu de Montes Claros com uma tradição de fé e de identidade da nossa formação originária...
A leitura dessas obras, propostas pela Unimontes para o seu Vestibular tradicional, guia o olhar do leitor para uma convergência de temáticas que realçam, acima de tudo, a importância de se revisitar o passado com olhar crítico, reconhecendo a contribuição de ações (Inconfidência), de tradições culturais e espirituais (catopês e jarê) e de resistência (afrodescendentes e indígenas) para a formação de uma identidade. Cada uma dessas expressões artísticas, dessa forma, contribui para a reavaliação do passado, trazendo à tona narrativas muitas vezes apagadas ou negligenciadas.
Cecília Meireles oferece uma reinterpretação poética dos eventos da Inconfidência Mineira, destacando figuras históricas que lutaram contra a opressão colonial. A poeta dá uma voz lírica aos inconfidentes, humanizando-os e revelando suas angústias e esperanças, trazendo a complexidade de suas motivações e os sacrifícios envolvidos. O movimento, muitas vezes reduzido a um simples ato de traição ou heroísmo nas versões tradicionais dos livros de história, ganha uma perspectiva crítica sobre a opressão colonial e a busca pela liberdade.
Itamar Vieira Junior, por sua vez, aborda a história recente de descendentes de escravizados de uma comunidade rural no sertão da Bahia. A narrativa segue a vida de duas irmãs cujas existências são marcadas por laços de sangue e terra, expondo a contínua exploração e marginalização dos afrodescendentes e mestiços indígenas. O autor dá voz aos silenciados, revelando suas histórias de resistência e resiliência em manter suas tradições. A narrativa é marcada por um profundo senso de pertencimento, em que a terra e a luta pela terra são centrais para a identidade e a sobrevivência da comunidade.
Tino Gomes, juntamente com Georgino Júnior e Danuza Menezes, também se dedicou as vozes estigmatizadas ao celebrar as raízes culturais afro-brasileiras e indígenas com a manutenção de batuques/ritmos dos catopês, marujos e caboclinhos. A música Montesclareou não é só uma homenagem a Montes Claros, mas um canto de afirmação de sua identidade. Numa cidade, cuja história de fundação conta com a presença de bandeirantes (responsáveis por afastar a presença de povos originários) e de senhores escravocratas, as Festas de Agosto representam a resistência de gerações que se firmaram através da sua fé e cultura. Artistas com visibilidade global como Tino Gomes chamam para si a responsabilidade de manter vivas tradições regionais que o mundo frequentemente ignora, desconhece e até menospreza. Há, pois, um esforço consciente nesse sentido de valorizar ativamente as tradições culturais que formaram e formam a identidade genuína de uma comunidade e região. Assim como em Torto arado com o jarê, o trabalho de Tino Gomes e seus parceiros com as festas cristãs reconhece que a religiosidade está intrinsecamente ligada às tradições, sendo um elemento de resistência, essencial para a coesão e continuidade histórica.
Comumente, uma convergência nas obras dos autores estudados é a presença da religiosidade. Em Romanceiro da Inconfidência, além da menção às festas de congada com Chico Rei, a alegoria do martírio de Tiradentes à paixão de Cristo, e a comparação da delação de Silvério dos Reis com a traição de Judas evidenciam a natureza humana em buscar imagens para associações e, assim, interpretar a vida.
Em Torto arado, as práticas religiosas é a essência que mantém unida uma comunidade. Mais que isso, é o jarê que sustenta o modus operandi de um povo que se irmana na Chapada Diamantina. A religiosidade é, explicitamente, uma força de resistência e união, um refúgio espiritual e uma maneira de preservar a identidade cultural frente à opressão e ao proselitismo evangélico. A afirmação do culto ao jarê e sua manutenção é forma de manter viva a ancestralidade através de seus filhos, como se vê em Donana (avó), Zeca Chapéu Grande (pai) e Belonísia (filha). Itamar Vieira Junior não só traz personagens ligadas à espiritualidade do jarê, como dá voz a uma entidade, Santa Rita Pescadeira. Com isso, ele aproxima a “divindade” com a “humanidade”, reforçando a fé de todo crente que se sente participante em sua crença dos desígnios divinos.
O sincretismo religioso do jarê, através das “brincadeiras” em que o Velho Nagô está ao lado de Santa Bárbara ou Iansã, São Cosme e Damião encontra correspondência na devoção ao Reisado de Nossa Senhora do Rosário, de São Benedito e ao império do Divino Espírito Santo, que são celebrados ao lado da coroação do rei congo.
Destarte, a voz carioca de Cecília Meireles, a baiana de Itamar Vieira Junior e as mineiras de Tino Gomes, Georgino Junior e Danuza Menezes reverberam, cada qual em sua obra, narrativas históricas a partir do olhar do outro: do colonizado, do marujo, do preto (ex)escravizado, do indígena, do oprimido; indo, dessa forma, na “contramão” do discurso oficial do colonizador, do capitão/desbravador, do senhor/coronel, do bandeirante/catequizador, do opressor/patrão. Os autores destacam a influência dos movimentos artísticos na identidade e diversidade cultural brasileira, sobretudo da Chapada Diamantina, e do norte, noroeste de Minas Gerais e dos vales do Jequitinhonha e Mucuri, a partir da subjetividade de seu povo.