Mosca espanhola - Will Ferguson
Literatura de entretenimento com algo a mais: história norte-americana e mundial como pano de fundo, humor, sacadas inteligentes, jazz e um pouco de filosofia
Will Ferguson - Mosca espanhola, São Paulo, Companhia das Letras, 2011
Comecemos pelo título, Mosca Espanhola, que seria um afrodisíaco fabricado a partir desse inseto com a finalidade de colocar mais paixão (leia-se outra palavra iniciada com t) na vida das pessoas. Mas que nessa história não passava mesmo de um placebo de bicarbonato de sódio para ser dissolvido em água ou no refrigerante favorito de quem estava sofrendo da falta de desejo sexual. Era vendido através de anúncios diversos em troca de pagamento antecipado, mas se não desse resultado o cliente seria reembolsado. Seria nada, nunca, senão não seria um golpe...
Essa ideia safada foi desenvolvida, depois de algum tempo de estrada e um aprendizado cheio de golpes, por um rapaz de 19 anos de mente aguçada, Jack McGreary, morador da pequena, pacata e pobre Paradise Flats, cidadezinha poeirenta do Texas. Que um dia ele abandona para seguir um casal de vigaristas, Virgil Ray e Miss Rose, uma "espécie de Bonnie & Clyde sem armas", que aparece ali para aplicar pequenos golpes nos comerciantes, como faziam em inúmeros lugares.
Estamos em 1939, dez anos após a queda histórica da bolsa de Nova York, o fascismo e o nazismo estão aliados na Europa e continuam avançando pelo território de outros países, os americanos observam com preocupação o desenrolar da II Guerra Mundial, mas na qual irão entrar de fato somente em 1941. Antes que deixasse sua cidadezinha com o casal golpista, o pai de Jack queria que o filho se alistasse no exército, fosse lutar na guerra.
Mas Jack era um rapaz diferente, que passava horas na biblioteca da cidadezinha lendo os clássicos e decorando certas palavras do dicionário. Ali ele se apaixona pela filha da bibliotecária e a ela diz trechos de A Arte de Amar, de Ovídio e de Pensamentos, de Pascal. Mas o romance é bruscamente interrompido porque a mãe da moça é uma fera, a proibe de se encontrar com Jack. De todo modo, toda aquela leitura o tornou quase um intelectual nesse lugar perdido no vento e na poeira, conforme o médico e o pastor locais o reconhecem.
Como que adotado por Virgil e Miss Rose depois de um golpe da dupla em Paradise Flats que presenciou, Jack passa a ajudá-los a aplicar diversos golpes inventivos e por vezes hilariantes em inúmeras cidadezinhas do sudoeste americano. E todos esses golpes, alguns complicados, de fato foram executados por vigaristas reais. Ficamos sabendo disso no final da leitura através da Nota do Autor, Will Ferguson, onde ele narra diversos fatos e histórias que estão na gênese da Mosca Espanhola. Tudo isso Ferguson transformou numa história pra lá de interessante, regada a jazz e pequenos crimes, dinheiro fácil e alguma tensão sexual.
Perto do final temos um golpe em cuja trama se insere um assassinato, pelo qual Jack vai se sentir em parte responsável juntamente com Virgil e Miss Rose. Esse caso, para se elucidado requer outro golpe que não pode falhar sob pena de que o trio perca todo o dinheiro ganho até ali e ainda alguém morra de fato agora. É um dos poucos momentos tensos do livro, que Ferguson soube trabalhar inteligentemente e fazer a história dar uma reviravolta surpreendente.
A maior parte do tempo nos divertimos bastante com tudo, com a astúcia dos protagonistas, as histórias que eles contam, os golpes que aplicam. E assim, pode-se dizer que Mosca Espanhola é um golpe de mestre de Ferguson (tal qual aquele filme de George Roy Hill, de 1973, com Paul Newman e Robert Redford). E para finalizar um trecho em que o espertalhão Virgil explica para o aprendiz (mas nem tanto) Jack porque as pessoas caem tanto em golpes com substâncias que prometem a cura de doenças:
"Tudo faz parte da mesma coisa, garoto: a promoção de falsas esperanças. E falsa esperança é uma mercadoria que nunca diminui de valor. Cite uma preocupação e existe uma panaceia, com preço razoável e num suprimento convenientemente embalado. Sangramento de úlceras, varizes, diabetes, inflamação hemorroidal crônica. Joanetes, calvície, dentes salientes ou pernas abauladas. Surdez ou miopia, orelhas de abano ou olhos estrábicos. Fígados cancerosos e vesículas biliares gelatinosas, cataratas e abatimento. Existe uma cura para tudo."
E em todo lugar existem pessoas sempre a fim de aplicar golpes nos outros e existem os tolos, distraídos ou ingênuos para acreditar e cair neles. E existe esse livro delicioso que mesmo sem ter o objetivo direto de demonstrar isso, acaba nos deixando com vontade de aplicar um em alguém. Mas de mentirinha, claro. Só para rir um pouco.