Arquipélago Gulag - Aleksandr Soljenítsyn
Edição original tinha 3 volumes (mais de 1000 páginas) e foi condensada pela esposa do autor autorizada pelo mesmo. Foi essa que li, são 684 páginas, então o resumo abaixo (mais do que uma resenha) é bastante extenso e pode não ser interessante para muita gente. Quem avisa amigo é.
Aleksandr Soljenítsyn - Arquipélago Gulag, SP, editora Carambaia, 2023
Em Arquipélago Gulag (1973) Aleksandr Soljenítsyn (1918-2008) relata histórias reais dos tempos duros (sangrentos) do stalinismo, quando os soviéticos podiam ser detidos por quaisquer motivos e enviados para as distantes prisões siberianas e outras. Mesmo pequenos crimes, como roubar um pepino, uma espiga de milho, duas batatas e até mesmo um carretel de linha, eram severamente punidos, às vezes com dez anos de reclusão. No caso do roubo de um retrós, um carretel de linha, como ficaria ridículo registrar a ocorrência desse modo e com uma pena tão excessiva, então os policiais registravam o roubo de 200 metros de material de costura. Para eles a coisa ficava bem melhor assim, não? E muito, muito pior para o pequeno ladrão ou ladra. Que roubavam por necessidade, por escassez de alimentos e outros recursos, não porque fossem bandidos.
Para Marx e Engels o comunismo seria a doutrina das condições de libertação do proletariado, última etapa depois do socialismo e da superação do capitalismo. Coitados dos proletários que acreditaram nisso, especialmente os que viveram sob a ditadura stalinista, responsável pela morte de cerca de 20 milhões de pessoas: mujiques, operários, jovens, engenheiros e técnicos, agrônomos, economistas e pessoas comuns. Devido à decisiva participação soviética para a vitória aliada na Segunda Guerra Mundial, Stalin, o chamado Pai dos Povos (soviéticos) durante muito tempo conseguiu esconder do Ocidente as mortes perpetradas por seu governo. Qualquer um podia ser preso, taxado de contrarrevolucionário, inimigo da Revolução de 1917, que acabou com o czarismo.
Mortes horríveis aconteciam, geralmente por fuzilamento, mas também por fome e frio. As condições das prisões eram deploráveis, a comida era pouca e pouco saudável, a muitos presos era permitido ficar apenas com as roupas de baixo em baixíssimas temperaturas, então acabavam morrendo de frio, claro. Os mortos eram muitas vezes amarrados uns nos outros e enterrados em valas comuns. São inúmeras páginas, terríveis, narrando esses acontecimentos. As prisões tinham às vezes motivos ridículos como causa, como os exemplos que Soljenitsyn nos apresenta a toda hora para deixar bem claro o horror que era viver na antiga URSS.
Conseguimos ler até o final porque o autor trata tudo com ironia, ridiculariza o que era ridículo, daí o sucesso do livro, que senão seria extremamente dramático, pesado demais para o leitor. Prosseguindo, então: “Uma vendedora, pegando a mercadoria com um expedidor, anotou em uma folha de jornal, pois não havia outro papel. O número de pedaços de sabão acabou ficando na testa do camarada Stálin. Artigo 58, dez anos.
“Um tratorista da estação de máquinas e tratores Známenskaia aqueceu sua botina velha com o folheto de candidatos à eleição do Soviete Supremo. A faxineira, que respondia por esses folhetos, deu pela falta e descobriu com quem estavam. KRA, agitação contrarrevolucionária, dez anos.
“Irado, um pastor xingou uma vaca desobediente de "puta do kolkhoz". Artigo 58, sentenciado.
“Um carpinteiro surdo-mudo também recebeu uma sentença por agitação contrarrevolucionária! Como? Estava assoalhando o chão de um grande salão, e o haviam esvaziado completamente, sem restar um cravo ou gancho. Durante o trabalho, largou o paletó e a boina em cima de um busto de Lênin. Alguém entrou e viu. Artigo 58, dez anos.”
A repressão e a violência russas são antigas, não são criação de Vladimir Putin (n. 1952), que não apenas cerceia a liberdade dos cidadãos do país, que frequentemente também são acusados pelo Estado de traição. Ele segue a cartilha de Lenin (1870-1924) e Stalin (1878-1953), mandando prender seus opositores e até matá-los, muitas vezes por envenenamento e quedas misteriosas de janelas. Mas a coisa, a repressão, é bem mais antiga, como escreve Soljenítsyn:
“Toda a história russa é uma sequência de tiranias. A tirania dos tártaros. A tirania dos príncipes moscovitas. Cinco séculos de despotismo nacional, do tipo oriental, e de uma franca e arraigada escravidão. (Nada do Ziémski Sobor, nada da comunidade rural, nada dos cossacos livres ou do campesinato do norte.) Fosse Ivan, o Terrível; ou Aleksei, o Pacato; ou Pedro, o Rude; ou Catarina, a Aveludada; ou até Alexandre II: antes da Grande Revolução de Fevereiro, dizem eles, todos os tsares só sabiam fazer uma coisa: oprimir. Esmagar seus súditos como besouros, como lagartas. O regime curvava seus súditos, as rebeliões e levantes eram invariavelmente esmagados.” Essa Grande Revolução de Fevereiro de que fala Soljenytsin ocorreu em 1917, após grandes rebeliões, o que resultou na renúncia do czar e na instalação de um governo provisório. Em outubro de 1917 os bolcheviques tomaram o Palácio de Inverno, e aí foi que se deu de fato a Revolução Russa, tendo Lenin como primeiro governante.
Foi durante o governo de Lenin que os campos de concentração para trabalhos forçados ganharam a forma que mais tarde estaria consolidada com Stalin, o Grande Facínora, como o chama Soljenítsyn. Os gulags eram campos de trabalhos forçados para criminosos, presos políticos e cidadãos denunciados como contrarrevolucionários. Então o Estado soviético se baseava em grande parte na repressão, controle, espionagem e processos de alijamento da vida cotidiana, bem como determinava penas capitais, conforme já relatamos antes.
O recurso do Gulag (abreviação de Glavnoe Upravlenie Legarei, significando Administração Central dos Campos) tornou-se peça fundamental da repressão soviética. Não se comparavam aos campos alemães da Segunda Guerra, claro, mas eram igualmente perniciosos e ultrajantes, pois milhões de pessoas foram confinadas nos gulags e ali inúmeras morreram, milhões delas. Na época da II Guerra Mundial, calcula-se que havia cerca de 476 complexos distintos de campos, verdadeiras ilhas de prisioneiros. Elas todas formavam o Arquipélago Gulag, conforme designou Soljenítsyn. Onde ele passou cerca de oito anos de sua vida, mudando de um campo para outro. Muitos, milhões de prisioneiros soviéticos não tiveram chance de sobreviver.
Soljenítsyn chamava esses campos de uma verdadeira indústria carcerária, alimentada por prisões a torto e a direito. Os prisioneiros eram obrigados a trabalhar cerca de doze horas diárias na construção de campos de trabalho forçado e prisões, represas, estradas e ferrovias, em minas de carvão, extração de madeira, quebrando rochas, na produção de alimentos etc. Claro que não ganhavam nada por isso, nem mesmo redução de suas injustas penas. Eram alimentados apenas com pão e água e uma sopa rala. Daí que eram não apenas campos de trabalhos forçados, também de extermínio, porque se tinha baixa expectativa de vida vivendo num gulag, mortos eram imediatamente substituídos por outros presos. Muitos morriam depois de três meses apenas vivendo num campo, onde imperavam má alimentação, piolhos, pulgas, doenças, frio extremo, surras, tratamento desumano, enfim.
Sobre a origem dos gulags Soljenítsyn escreve: “Em agosto de 1918, alguns dias antes do atentado de F. Kaplan contra ele, Vladímir Ilitch [ou seja, Lenin] escreveu, num telegrama ao Comitê Executivo Provincial de Penza: Recolher os suspeitos [não os culpados, mas os suspeitos, observação do próprio Soljenítsyn] ao campo de concentração fora da cidade. E, além disso: … provocar um impiedoso terror em massa... (ainda não era o decreto sobre o terror). E em 5 de setembro de 1918, uns dez dias depois desse telegrama, foi publicado o decreto do SNK, o Conselho dos Comissários do Povo, sobre o Terror Vermelho, no qual se dizia, entre outras coisas: “Proteger a República Soviética dos inimigos de classe por meio de seu isolamento em campos de concentração. Então foi daí – da carta de Lênin, e, depois, do decreto do Comissariado do Povo – que se encontrou e imediatamente se introduziu e se confirmou esse termo, “campo de concentração”, um dos principais termos do século XX, que tinha pela frente um futuro internacional tão amplo! E o quando foi em agosto e setembro de 1918. A expressão em si já era usada na Primeira Guerra Mundial, mas em relação a prisioneiros de guerra, a estrangeiros indesejados. Foi aqui que ela foi empregada pela primeira vez para os cidadãos do próprio país.”
Mas ninguém tentava fugir dos campos de trabalhos forçados e extermínio? Era difícil, por conta da intensa vigilância que os prisioneiros políticos ou não sofriam. Soljenítsyn relata diversos casos de fugas, quase todas terminadas em morte ou retorno à prisão com castigos, surras e aumento da pena. Também as condições geográficas e climáticas não ajudavam nada. Fugas não davam muito certo, assim como não davam certo as greves de fome, motins ou rebeliões que algumas vezes os prisioneiros desses campos promoviam. Soljenítsyn narra algumas delas, como começavam, se desenvolviam e terminavam com promessas dos administradores dos campos que jamais eram cumpridas e os líderes esmagados.
A maior rebelião de todas, deu-se em Kenguir, em maio e junho de 1954, portanto após a morte de Stalin, já no governo de Nikita Khrushchev (1894-1971) durou quarenta dias e os revoltosos exigiam que fossem punidos os guardas responsáveis pela morte de um evangélico que estava próximo do fim de sua pena, iria ser libertado em cerca de três meses; punição de todos os responsáveis pelos assassinatos de revoltosos ocorridos entre o no pátio da administração; punição para os que tinham espancado as mulheres prisioneiras; devolução ao campo dos companheiros que, devido à greve, tinham sido enviados ilegalmente para prisões fechadas; abolição dos números dos prisioneiros, abolir as grades nos barracões, não trancar os barracões; não reerguimento dos muros internos entre os postos dos guardas; jornada de trabalho de oito horas, igual à dos livres; pagamento pelo trabalho; correspondência ilimitada com os parentes e, às vezes, visitas; revisão dos processos. De 500 a 700 prisioneiros foram feridos ou mortos pelo Exército Vermelho, mas os documentos oficiais registravam apenas 37 mortos.
1953 marca o fim da pena de Soljenítsyn; ele é liberado do campo e começa seu exílio. É enviado para o Cazaquistão, onde passa a lecionar matemática e física numa escola em Kok-Terek. Stálin morre em 5 de março. Nikita Khruschov assume o poder. Tem início a chamada “desestalinização” (1953-1964). Em 1958 Soljenitsyn começa a escrever Arquipélago Gulag, publicado pela primeira vez em 1973 na França.