Dilúvio das Almas - Tito Leite
Ótima história: curta, bem contada, intensa e moderna; prende o leitor da primeira à última página
Tito Leite - Dilúvio das Almas, SP, Todavia, 2022
Dilúvio das Almas (2022) é ao mesmo tempo o título (enigmático, poético) do livro do cearense Tito Leite e uma cidadezinha fictícia do interior nordestino cujo nome não sei porque me lembrou o de outra cidade, essa real, Jardim das Piranhas (igualmente curioso). Talvez porque esses peixes vorazes são violentos como certos personagens do livro, que vamos conhecendo aos poucos.
Estreia do autor na prosa, que tem também seus momentos poéticos e citação do poeta francês Arthur Rimbaud, se dá através de uma história curta (pouco mais de cem páginas) porém intensa, intensidade essa que percorre o livro do início ao fim, não deixa o leitor parar de ler até chegar às derradeiras páginas. Li tudo num único dia, em poucas horas.
Escrito na primeira pessoa, pessoa errante que vagou por São Paulo, cidade que o humilhou por ser nordestino, Leonardo narra seu retorno à cidadezinha natal, um Ulisses que se negava a ser mais um tijolo no muro da metrópole, como na conhecida canção da banda inglesa Pink Floyd. Como ela, o livro evoca os anos 1970, mas a ação se passa primordialmente nos anos 1990 e seguintes.
Na pequena Dilúvio das Almas apenas sua mãe parece contente em vê-lo novamente: não é a volta do filho pródigo, que retorna depois de enriquecer no sul, embora agora ele possa citar filósofos (Nietzsche e o eterno retorno, por exemplo), cantores (Nick Cave, Pink Floyd, já citado), pensadores e artistas de um modo geral: essa é sua riqueza, cultural, espiritual.
Pensando bem, o sertão que ele deixou anos atrás tampouco se tornou pródigo: o mandonismo, o machismo, a misoginia, a precariedade, a violência e a desigualdade permaneceram. Se não tem mais cangaceiros faz tempo, tem jagunços a serviço do crime, aqui um vereador e seus comparsas cultivadores de maconha. Muito plantada no interior do nordeste, como sabemos há décadas.
As coisas que Leonardo narra parecem acontecer frente aos nossos olhos, até parecem palpáveis, porque mais do que um livro tem-se a impressão de estarmos não lendo um exemplar, mas vendo um filme. Onde a vingança é também um importante personagem de um roteiro que poderia ter saído das mãos, da cabeça de algum conhecido cineasta.
Como Glauber Rocha, Quentin Tarantino, Sergio Leone, até mesmo ter cenas ou personagens saídos do filme Bacurau (2019), uma mistura disso tudo resultando no que seria uma espécie de “nordestern”, um western nordestino. Em que um personagem recém-chegado a um lugarejo é obrigado, pela força das circunstâncias, a vingar a morte de parentes e ou amigos.
Daí que parece cinema, mas é literatura mesmo, da boa, moderna, cativante. Tito Leite, curiosamente um monge beneditino, entre outras coisas, desenvolveu mais profundamente em livro posterior, Jenipapo Western (2024), que não li ainda, apenas a sinopse da editora Todavia, aquilo sobre o que falei antes, o tal “nordestern”, a história dos gêmeos Ivanildo e Sandro, plantadores de algodão explorados pelos chefões locais. De volta a Dilúvio das Almas, um título até poético, vejamos esse trecho do livro, que mostra bem como Leonardo se via no mundo e o entendia:
"Sou feito árvores que rasgam suas raízes. Não sou homem de genealogia; dentro de mim, enveneno toda sensação de pertencimento. Árvores sem raízes se transmudam em árvores que andam. Não me compreendo nesse lugar.” Daí que não se sente confortável em casa, não acredita que possa ficar em Dilúvio muito tempo, pouca coisa o prende ali, praticamente apenas a presença da mãe. E prossegue:
“Meu verdadeiro pai morreu de tuberculose quando eu tinha sete meses. Minha mãe era uma viúva com um filho para criar, numa realidade nada generosa com as mulheres. Não havia muita possibilidade de trabalho. Na árida luta pela sobrevivência, ela foi enfermeira durante um tempo. Depois abriu uma pequena venda. Por causa da necessidade, se casou com o velho Joaquim, que era também viúvo e com três filhos pequenos. Apesar de ele não gostar de mim, eu o chamo de pai. Minha mãe dizia repetidamente 'pai é quem cria'. Toda vez que ele olha para mim, lembra que não foi o primeiro. Minha mãe amou outro."
Vale a pena conhecer Dilúvio das Almas, uma história intensa, que prende a atenção do leitor o tempo todo, que é curta, bem contada, e que me deixou com vontade de ler agora Jenipapo Western.