Ofélia e Booker Pittman, dupla autobiografia
OFELIA E BOOKER, DUPLA AUTOBIOGRAFIA
Miguel Carqueija
Resenha do livro autobiográfico “Por você, por mim, por nós”, por Ophelia e Booker Pitman. Editora Record, Rio de Janeiro-RJ. 1984.
Este livro é muito estranho e admira trazer o selo da Record. ´uma brochura precária e só traz uma foto mostrando o músico e Eliana Pittman. Quanto à mãe de Eliana (era conhecida como uma “supermãe”), aparecem duas grafias: Ophelia e Ofélia. Vamos ficar com essa, embora não seja da capa.
Resgatado num sebo, infelizmente faltam no volume justamente as páginas que contam como Booker Pittman, saxofonista norte-americano reconhecidamente de grande talento, veio para o Brasil, onde, após alguns anos, conheceu Ofélia, já então com sua filha Eliana. Booker acabou sendo o pai adotivo de Eliana, jovem mulata que se tornou uma sensação da música popular brasileira. Lembro bem dela cantando “Esse mar é meu”, lá por volta de 1970, música de João Nogueira referente à decisão do governo brasileiro de estender o nosso mar territorial para 200 milhas.
A capa do livro é simples e a capa de trás está em branco. Parece ter havido pouco caso da editora ou então foi livro financiado; parece uma edição amadora. Revezam-se os capítulos escritos por Booker e os de Ofélia. Vida dura de ambos os lados. No caso de Ofélia, pobreza, homens problemáticos, vizinhança idem, mudanças, brigas, situação precária e uma menina crescendo. Booker Pittman é neto de Booker T. Washington, que fundou o Instituto Tuskegee, “hoje uma universidade para brancos e negros, as bandas de negros — e fala, assim, porque havia separação entre negros e brancos, uma coisa terrível que só a música superava até certo ponto.
“Quando a América perdeu a guerra (Booker quer dizer: quando o Sul perdeu), os brancos, para não ficarem desprestigiados, começaram a fazer leis a fim de humilharem os negros (...) O negro não andava nas mesmas calçadas dos brancos; o negro não podia comprar nos mesmos armazéns; o negro não podia casar com mulher branca” (...) Como na América (ele quer dizer: Estados Unidos) era proibido negro casar com mulher branca (o autor não se refere, mas deduz-se que uma mulher negra também não poderia casar com homem branco), casavam-se entre si. Com isso foi-se formando uma raça negra dentro dos Estados Unidos.”
Na parte da Ofélia muita luta, dissabores, vida de brasileira pobre.
“Como eu estava sozinha, me propus a morar com mamãe, repartindo o aluguel de uma ótima sala, no Rocha (nota: uma sala, não um apartamento). Ali eu passei um ano para espairecer, enquanto Orlando tomava uma resolução. Eu deixava Eliana a semana toda com a Luísa, uma amiga que era casada com Claudionor, inspetor de polícia. Eles tinham dois garotos, Luís e Hélio, e uma menina, Neusa. Luísa era ótima pessoa; ali Eliana era bem tratada; eu a apanhava sexta-feira à noite, e a levava comigo; voltava segunda, para eu costurar “por dia” em casas de família. Foi mais ou menos tranquilo.” Pessoas pobres e trabalhadoras são heroínas!
Com Booker em sua vida itinerante de músico de “blue” e “jazz’, e nos anos que passou anônimo no Brasil antes de ser redescoberto, a vida também teve suas durezas. Mas no fim, pelo que se vê no livro, formaram os três uma família feliz. Aliás, também é narrado o início da bem sucedida carreira de Eliana Pittman como cantora de grandes recursos vocais. Ela chegou a se apresentar nos Estados Unidos ao lado de seu ilustre pai de criação, Booker Pittman, que faleceu em 1969.
Rio de Janeiro, 5 de maio de 2024.