Resenha sobre o livro Acesso à Justiça
Nas disposições iniciais da obra “Acesso à Justiça”, os autores Mauro Cappelletti e Bryant Garth traçam o panorama de discussão sobre o qual irão se debruçar ao longo do texto, tal enfoque se encontra na luta para o acesso dos cidadãos às instâncias de reivindicações de seus direitos em face do Estado. Os autores preliminarmente apresentam as teses de que o sistema em questão deve ser igualitário, de acesso efetivo, e capaz de produzir resultados justos nos níveis individual e coletivo. Para tanto, o objetivo de Cappelletti e Garth é delinear uma nova abordagem para os problemas contemporâneos do acesso à justiça, com o acolhimento das mais recentes acepções sobre as necessárias reformas das instituições jurídicas, o que também será objeto de análise posteriormente.
Por sua vez, esta resenha tem como finalidade apresentar as principais ideias dos autores e conceber uma compreensão contextual, teórica e crítica, tendo em vista a estruturação em cinco capítulos temáticos da edição de 1988 do livro em discussão e as possíveis reflexões que o conteúdo do texto pode suscitar nos âmbitos jurídico e social, com o horizonte da democratização aos cidadãos do acesso à justiça.
1. A evolução do conceito teórico de acesso à justiça
Adentrando no primeiro capítulo do livro, os autores expõem, a partir de um resgate histórico, as mudanças no sentido da expressão “acesso à justiça” e as suas variações ao longo do tempo. Assim sendo, observam que a tradição liberal previa uma igualdade essencialmente formal e não efetiva, vez que as instituições jurídicas, no entendimento burguês, somente poderiam ser acessadas por aqueles que tivessem condições materiais.
A diferença em relação à contemporaneidade incide no fato de que o problema da desigualdade que afeta os litigantes é atualmente reconhecida como um obstáculo a se superar. Outrossim, em comparação com os séculos XVIII e XIX, a solução a ser dada hoje é entendida com base no caso concreto, situando-se mais próxima da realidade, assim como as necessárias reformas, o que corrobora a busca por efetiva igualdade, aplicada faticamente. Cabe ainda apreciar a figura do processo civil enquanto elemento que apreende o conceito do acesso à justiça ao funcionar como instrumento aplicado na prática do exercício jurídico, cujas técnicas devem se prestar a servir o corpo social na resolução de seus conflitos.
A partir destes dados iniciais, pode-se desde já extrair uma reflexão crítica no sentido da importância de delimitar conceitos e elucidá-los do ponto de vista terminológico, posto que seu sentido se amolda conforme o âmbito em que está expresso. Sendo assim, é mister compreender que a ideia de acesso à justiça em questão ocorre na acepção jurídica, sem que isso impeça, entretanto, a conexão com outros campos, como a política e a sociologia, o que enriquece o debate. Tendo-se conhecimento sobre suas relações, facilita-se de igual maneira a distinção entre os termos em seus significados, o que também é objeto de esquematização.
Para concluir suas considerações iniciais, os autores atentam que com a complexização da sociedade, os direitos humanos passaram por transformações e os interesses coletivos se sobrepuseram em relação aos indivíduos e às declarações de direitos que resultaram das revoluções burguesas.
Ampliou-se destarte a atuação positiva do Estado, firmando-o em uma posição de garantia dos direitos mais básicos e imprescindíveis, entre os quais se insere o acesso à justiça em um viés primário, visto que sem ele não se torna possível o pleito categórico dos demais.
2. O significado de um direito ao acesso à justiça: os obstáculos a serem transpostos
De modo a dar continuidade aos seus pensamentos, os autores inferem que não foi somente o conceito de “acesso à justiça” que passou por modificações, mas igualmente o próprio significado de “efetividade”, cujas dificuldades podem ser vistas na prática por meio das custas judiciais, com suas implicações analisadas de modo comparado com as tradições jurídicas de outros países. Entre suas problemáticas elencam-se as despesas, como as custas do processo, o problema das pequenas causas, com custos desproporcionalmente dispendiosos dada a menor importância de um fato que abrange um conteúdo não compensador da ação, e a demora judicial já consolidada.
Por outro lado, deve-se verificar as possibilidades e vantagens das partes quanto aos recursos financeiros que dispõem, a aptidão para reconhecer um direito e propor uma ação ou sua defesa, traduzida na capacidade jurídica pessoal de ajuizar uma demanda e o fato de se caracterizarem como litigantes eventuais ou habituais, inserindo-se nestas últimas divisões, fatores sociais decisivos a sopesar, em razão da heterogeneidade das condições dos sujeitos.
Cappelletti e Garth enfatizam ainda os problemas específicos dos interesses difusos, ante seu caráter fragmentário e coletivo que obstam uma resposta a sua lesão, o que contribui para a compreensão de que persiste uma tendência individualista no funcionamento do sistema jurídico, com a prevalência dos valores pessoais e econômicos e com a inter-relação das barreiras a se sanar. Isto é, a tentativa de eliminar cada problema isoladamente não prospera, sendo necessária uma ação conjunta entre as instituições, os cidadãos e o Estado-juiz.
3. As soluções práticas para os problemas de acesso à justiça
Me chamou a atenção a esquematização dos autores sobre o estudo das três posições básicas que emergiram na busca por alternativas ao acesso, visto que o conteúdo tratado no livro não se limitou a uma análise apartada das formas a se resolver o problema do qual se discorre.
A primeira corrente que surgiu fez jus à assistência judiciária aos pobres e encontrou suas bases em reformas estatais para remuneração de advogados que prestassem assistência judiciária, o que a meu ver é um embrião dos modelos de defensorias públicas. A fim de fundamentar seu ponto de problematização, os autores recorrem às reformas judiciárias realizadas por países ocidentais como Alemanha, Inglaterra e Estados Unidos.
Nesse ínterim, recebeu especial destaque o sistema judicare, que nas palavras de Cappelletti e Garth, estabeleceu-se “como um direito a todas as pessoas que se enquadrem nos termos da lei”, cuja finalidade é proporcionar aos cidadãos de baixa renda, uma representação judicial da mesma qualidade caso tivessem condições para contratar um advogado. Apesar de seu nobre ideal, os autores constatam que esse sistema não é de todo satisfatório, posto que ele se volta ao sujeito, sem abordar a situação das classes.
Outro modelo assistencialista é o do advogado remunerado pelos cofres públicos, que em contraposição ao judicare, preocupa-se com a conscientização dos cidadãos sobre seus direitos e com a minimização das barreiras de nível socioeconômico. Há ainda a possibilidade de combinar os dois modelos de forma complementar, extraindo de cada um suas qualidades.
Concordo com os autores no que tange ao fato de que não basta garantir a assistência judiciária sem investir em um número suficiente de advogados que estejam interessados em assumir a tarefa, o que por conseguinte implica um largo orçamento para a viabilidade. Faço um adendo à teoria apresentada, todavia, quanto à análise quantitativa realizada por eles sobre o levantamento de advogados no contexto em que escrevem.
Ou seja, considero que não é apenas o valor numérico o fator a se analisar, mas principalmente a qualidade dos mesmos na prestação de serviços jurídicos e no que toca aos seus conhecimentos ante a aplicação do direito com atenção às implicações da estratificação social, nitidamente presente no âmbito dos estudos aqui propostos.
Já a segunda onda afrontou a questão da representação dos interesses difusos, de ordem coletiva, por intermédio de mudanças na concepção do processo civil tradicionalmente individualista e de seus respectivos institutos, valendo-se de uma veemente crítica à ação governamental em sua desconsideração pelos grupos sociais, o que suscita outras preferências que substituam a inflexibilidade do governo, como a figura do procurador-geral privado, a representação do interesse público por grupos privados, o advogado do interesse público, e a assessoria pública em uma solução pluralística de combinação de recursos disponíveis.
Por seu turno, os autores apresentam um terceiro posicionamento, que diz respeito a uma noção mais abrangente e inovadora de acesso à justiça a partir das reformas motivadas pelo propósito de garantir maior tutela jurisdicional e de abrigar direitos outrora menosprezados. É evidente a centralidade dada aos mecanismos e procedimentos que estão além dos métodos já previstos para acessar a justiça de forma efetiva.
Rompe-se de tal maneira com o engessamento comumente associado aos atores envolvidos no deslinde dos litígios e com uma uniformização fechada de soluções, o que permite um horizonte ampliado de formas de resolução conforme o grau de especificidade das causas, cujas repercussões podem se dar no plano individual e coletivo, em constante diálogo entre si.
4. Tendências no uso do enfoque do acesso à justiça
Após discutirem a problemática do acesso justiça e suas possíveis soluções, Cappelletti e Garth passam a estudar mais detidamente as implicações que incidem nas reformas dos sistemas de justiça na dimensão procedimental adotada pelos tribunais, a fim de torná-los menos onerosos e mais céleres, características do princípio da economia processual.
Entre os métodos alternativos para a sua simplificação, situam-se a arbitragem e a conciliação, conceitos a partir dos quais os autores estabelecem distinções e apontam vantagens, tendo em vista o sucesso de sua adoção em outras localidades.
Demais opções indicadas e que têm se mostrado convenientes são o apelo aos incentivos econômicos, a criação de tribunais especializados, que se mostraram importantes para o descongestionamento judiciário e para o obstáculo das pequenas causas; a instalação dos tribunais de “vizinhança” para a solução de divergências comunitárias cotidianas e de tribunais especiais para as demandas dos consumidores, inclusive aplicando-se a arbitragem privada e o envolvimento público por fórmulas governamentais, o que abre espaço para a especialização dos esforços na garantia dos direitos em outras áreas de reivindicação jurídica, como em causas relativas ao trabalho e ao meio ambiente, por exemplo.
As reformas guiam-se pelos quatro principais objetivos que são apurados nesta parte da obra. São eles: a promoção da acessibilidade geral, aproximando os tribunais das pessoas comuns; a tentativa de equalizar as partes; a alteração no estilo de tomada de decisão; e a simplificação do direito aplicado. Para além da especialização dos procedimentos, as reformas propõem mudanças na própria metodologia de prestação de serviços jurídicos, que passa a desempenhar um papel mais ativo, com planos de assistência coletiva.
5. Limitações e riscos do enfoque de acesso à justiça: uma advertência final
A título de conclusão do livro, Garth e Cappelletti traduzem suas disposições finais, que encerram uma obra importante e visionária. Pretendem assim corporificar a noção de que as reformas estão em construção e ainda há muitos degraus a galgar até um patamar de segurança social e de plenitude de acesso dos cidadãos aos seus direitos. Em última análise, trata-se de asseverar o direito a ter direitos. Além disso, as mudanças não estão isentas de riscos e limitações, mas têm o potencial de alterar significativamente os rumos do acesso à justiça.
Por fim, urge compreender o cerne dos questionamentos postos pelos autores diante do conjunto de instituições, técnicas e sujeitos que compõem o sistema judiciário, analisando as problemáticas de seu contexto e reiterando que o intuito de suas ideias não reside na busca por um sistema simplório de informalidade dos ritos, mas sim na descoberta de um sistema que apesar de suas limitações, entenda o acesso enquanto medida elementar de justiça social.
Interesses e pretensões acompanham os seres humanos desde os primórdios, é do contrato social que se poderia entender os fundamentos do Estado moderno, e no sistema de justiça hodierno, ainda observa-se que falta um acompanhamento mais próximo dos jurisdicionados.
Da leitura da obra, portanto, depreendo que os autores estão dispostos a pensar o acesso à justiça a partir de meios e instrumentos que vinham se consolidando no tempo em que escreveram. De forma oportuna, o direito tem se encaminhado para as vias consensuais de resolução de conflitos, de forma que já nos é tangível pensar de forma diferente acerca dos institutos processuais.
Assim sendo, extraio como reflexão final que o acesso à justiça é tema que diz respeito ao chamamento do Estado diante de um confronto de interesses cuja satisfação frequentemente depende de uma decisão jurídica, que deve não apenas considerar o conteúdo do direito e seus procedimentos, como igualmente deve ser assegurada a todos. À vista disso, deve-se respeitar o princípio constitucional da isonomia e do devido processo legal, de modo que o acesso democrático possa sair do plano das ideias e reverberar em concretude no sistema de justiça ora em vigor.
Disciplina: Teoria do Processo