Escuna de gelo

 

ESCUNA DE GELO

Miguel Carqueija

 

Resenha do romance de ficção científica “A escuna que veio do gelo”, de Michael Moorcock. Galeria Panorama, Alfagide (Damaia), Portugal, sem data. Série Antecipação, EP/A38. Título original: “The ice schonner”, direitos reservados pelo autor em 1969. Tradução: J.J. Serrano. Direção da coleção: Lima Rodrigues.

 

Há muitos anos sou fã da ficção científica porém nos últimos tempos venho esbarrando com obras que não me agradam nem um pouco, com tramas violentas, heróis insensíveis e filosofia materialista. Este romance de Michael Moorcock, porém, despertou-me o interesse.

Uma terrível idade do gelo atingiu a Terra nos dois hemisférios, sepultando as cidades e os oceanos, em consequência a humanidade precisou se adaptar, construindo habitações, cidades inteiras, sob o gelo, e desenvolvendo barcos de gelo, que “navegam” com flutuadores e velas e, no resto, comportam-se como navios, com tripulações de marujos. Caçavam baleias que, na falta de água, agora viviam no gelo. Havia outros animais, como ursos e algumas aves, tudo porém, seres que aguentavam o frio.

Surgiu assim uma religião típica, o culto à “Mãe do Gelo”, entidade que ninguém vira mas que “devia” existir mais ao norte.

O personagem principal, em torno do qual toda a história gira, é Konrad Arflane, da cidade de Brershill, no planalto de Mato Grosso, no Brasil (ou o que tinha sido o Brasil). Ele participava das crenças supersticiosas de então:

“Em todas as estações o cenário era sempre gelo, em todas as suas variações e coloridos, e Arflane sabia perfeitamente que a paisagem nunca mudaria. Haveria sempre gelo por toda a eternidade!”

Comandante de escuna, Arflane se vê em dificuldades por falta de trabalho — a decadência daquela civilização vai se tornando visível desde a primeira página. As frotas diminuem, por toda a parte o gelo vai recuando, mesmo sendo um processo lento. A caça, ou pesca, torna-se escassa. Os adoradores da “Mãe do Gelo”, que tendem ao fanatismo, não querem acreditar. Arflane acaba salvando da neve e do gelo certo Lord Pyotr Rorsefne, de Friergalt — sobrevivente de uma desastrada expedição à lendária cidade de Nova Iorque, muito, muito ao norte.

Arflane envolve-se com a família do lorde e acaba comandando uma escuna para tentar descobrir a cidade perdida, se realmente existia. Pyotr Rorsefne morre sem poder ir; seguem o estranho casal Janek e Ulrica Ulsenn e Manfred Rorsefne. O exótico arpoador Urquart, o “Longo Arpão”, também vai. O marido de Ulrica e Konrad Arflane logo se tornam inimigos, no clássico triângulo amoroso.

Em suma é um romance denso, original, onde o autor se esforça para dar ares de verossimilhança a um mundo futuro dominado pelo frio e pelo gelo e uma civilização fatalista e conformada com a ideia (que faz lembrar certa crendice do nazismo) do gelo eterno. E é bizarro que o “herói” da novela, o durão Arflane, que ao longo da narrativa ultrapassa tantos perigos, tantas dificuldades que venceriam a maior parte das pessoas, se mostre ao final das contas um prisioneiro da sua própria superstição, recusando-se a aceitar as evidências em contrário e preferindo continuar numa jornada sem fim, em busca do inexistente, até a auto-destruição.

Romance denso, melancólico e trágico.

 

Rio de Janeiro, 4 de maio de 2024.