Presépio (Contos de Aprendiz) - de Carlos Drummond de Andrade.
Neste conto singelo, o poético, sempre poético, visceralmente poético, naturalmente poético, espiritualmente poético Carlos Drummond de Andrade conta uma cena da vida da atarefada, responsável, prendada, caprichosa Dasdores, esta às voltas, na véspera de um Natal, com a arte de confecção de presépios - que uma sua tia lhe havia ensinado, tia agora morta -, responsabilidade que assumia com amor e paixão, amor espiritual, amor pelo Menino Jesus. Neste dia, todavia, Dasdores, um tanto quanto confusa, o seu espírito cá e lá, ocupava-se com o presépio, e fugiam-lhe seus pensamentos para um sobrado situado em outro prédio, onde residia Abelardo, seu namorado. Seus pensamentos iam e vinham, confundiam-se. Queria Dasdores satisfazer seus dois sentimentos conflitantes, o que dedicava ao sagrado e o que ocupava com o profano. Transtornava-se: Via no Menino Jesus o Filho de Deus, ou o Abelardo?! E o relógio a atormentá-la: "Agarra-me! Agarra-me!" Não lhe dava um segundo de descanso, para respirar, para recuperar fôlego. Não lhe dava tréguas.
Urgia concluir o presépio antes das doze badaladas.
E os irmãos de Dasdores a amolá-la; querendo ajudá-la, a atrapalhavam.
O tempo urgia.
O presépio tinha de estar pronto para a noite de Natal, cada personagem a ocupar o seu lugar histórico, a representarem, todos, a mais famosa e importante noite da história: Maria e José; e os Reis Magos; e os pastores; e o Menino Jesus: cada um deles no lugar que a história consagrou. E os animais, carneiros, camelos, também têm, cada um deles, o seu canto, para cada um deles reservado há dois mil anos - todos eles representados na arte original de São Francisco de Assis.
E o relógio não oferece refresco à atarefada, e serena, e preocupada Dasdores: "Agarra-me! Agarra-me!".
Além de cuidar descrever a angústia de sua personagem, que se ocupou com a arrumação do presépio, tarefa da qual ela, ela unicamente, poderia se desincumbir com segurança, e presteza, e correção, Carlos Drummond de Andrade, com espirituosidade cativante, amorosa, descreve-lhe a vida de moça prendada, sobrecarregada de obrigações que seus pais lhe impõem, ambos os dois a respeitarem, diz o poeta, "o primeiro mandamento da educação feminina: trabalharás dia e noite." Tem Dasdores (e todas as outras mulheres) de ocupar todas as horas do dia com tarefas laboriosas, e enfadonhas, até enquanto dormia, para que, assim, sempre ocupada, a cabeça nelas concentrada, não pensasse besteiras, bobagens, bobices típicas de moças donzelas. Conquanto atribulada a sua vida, sua cabeça voava, e voava, e voava, e voava para céus nunca dantes navegados...
Naquele dia, decidida a armar o presépio, tarefa que tinha de concluir antes da meia-noite, não pôde ir à igreja, para assistir à Missa do Galo, e na igreja encontrar Abelardo, que lhe ocupava os pensamentos.
E assim correram os minutos: Dasdores a armar o presépio, e a ver, com os olhos do espírito, o namorado ausente onde deveria ver apenasmente o Menino.
Carlos Drummond de Andrade narra a história, um conto singelo, curto, de quatro páginas, com tal graça, que encanta.