Filho de Jesus - Denis Johnson

Denis Johnson - Filho de Jesus, SP, editora Todavia, 2023

Picados, bebidos, fumados, cheirados e fodidos: conheça Bostalhão e seus amigos

Ano passado, 2023, li Sonhos de Trem (Companhia das Letras, 2012), livro curto (88 páginas apenas), achei bom e fiquei interessado em ler outras obras de Denis Johnson (1949-2017), caso deste Filho de Jesus, que também não é longo (112 paginas, Todavia, 2023). O título vem de uma canção, “Heroin”, que faz elogio não à mulher do herói, mas à droga ilícita mesmo, muito consumida pelos personagens de Johnson: “When I'm rushing on my run / And I feel just like Jesus' Son… (Lou Reed). Como se sabe, a heroína é uma droga semissintética, proveniente da morfina, esta derivada do ópio extraído da papoula Papaver Somniferum.

Johnson escreveu as onze histórias do volume durante seu processo de desintoxicação, porque ele mesmo fizera uso constante de drogas e álcool no passado, e o lançou em 1992, porém elas se passam durante os anos 1970. Em 1999 Filho de Jesus virou filme homônimo e o narrador sem nome, sobre quem sabemos muito pouco, assim como ocorre com outros marginalizados e desorientados que povoam as onze narrativas, foi apelidado de FH, ou Fuckhead, ganhando a cara e os trejeitos do ator Billy Crudup. O próprio Denis Johnson faz uma ponta na versão cinematográfica, que é bastante fiel ao livro, embora tenha me parecido mais “limpa” do que eu imaginava depois de terminar a leitura.

Na tradução brasileira FH virou Bostalhão. Quando ele começa a nos contar sua história, está sem dinheiro, pegando carona no meio da chuva numa estrada do meio-oeste americano, depois de ter consumido drogas e bebidas oferecidas pelos outros motoristas que lhe deram carona. Pretende encontrar sua ex-namorada Michelle, a quem ainda ama, que conheceu em Iowa em 1971, mas que depois de uma briga tinha ido embora viver com outro homem em Kansas City. Através dela, viciada em heroína, foi que se iniciou no vício dessa droga. Na estrada, ao pegar carona com uma família, ele tem a premonição de que haverá um grave acidente e é isso mesmo o que acontece depois. Daí que essa primeira narrativa se chama “Desastre de carro no meio da carona”. Apenas um bebê e ele sobrevivem, mas Bostalhão não sabe o que fazer com a criança. E mais coisas estranhas e absurdas virão pela frente...

Nas dez histórias restantes conhecemos personagens e situações diversas regadas a drogas, bebidas e cigarros, que incluem traições, brigas, roubos, perdas e mortes, narrativas que não seguem uma ordem cronológica e nem sempre terminam naquele esquema de início-meio-fim, como nos contos tradicionais. Elas refletem o estado mental em que se encontra o narrador sob o efeito das drogas e vão fazendo mais sentido à medida que avançamos na leitura porque, de fato, estão todas interligadas.

Lá pelo meio do livro, em “Emergência”, nos deparamos com Bostalhão trabalhando num hospital, onde consegue, através de um auxiliar de enfermagem tão viciado quanto ele, pílulas roubadas da própria farmácia hospitalar. Enquanto as consomem, aparece um sujeito com uma faca enfiada no olho, vingança da esposa enciumada que o flagrara espionando a vizinha tomando sol no quintal. Apesar de aflitiva é uma das histórias mais hilárias (ou estranhas) das onze, principalmente depois que o seu colega auxiliar atropela na estrada uma coelha grávida e ele tem de cuidar dos coelhinhos... Nesse episódio, no filme, o personagem Terrance Weber, que levou a facada no olho, é interpretado pelo próprio Denis Johnson, um cultor do humor negro, como se vê.

Bostalhão trabalha porque precisa de dinheiro para sustentar seu vício, drogas nunca custaram barato para ele. Na quarta narrativa, “Dundun”, que é o apelido de outro viciado, amigo dele, está em busca de ópio sintético, de farmácia, medicamento controlado, porque como também se sabe, os opioides são analgésicos poderosos, mas Dundun já havia consumido tudo. Tanto que acabara atirando acidentalmente num terceiro amigo deles, McInnes, que acaba morrendo a caminho do hospital. Depois de outras aventuras e peripécias para conseguir drogas como nessa narrativa, que são as outras histórias absurdas que compõem o miolo do livro, Bostalhão também está trabalhando na última delas, “Beverly Home”. Que nada tem a ver com Beverly Hills, pois se tratava de uma clínica de repouso para idosos, que também cuidava de deficientes físicos mais jovens.

Nessa história ele se envolve com duas mulheres diferentes. Uma menonita casada, com quem não se relaciona, apenas a espia escondido num canteiro de jardim, através de uma janela da casa enquanto ela toma banho e cantarola canções, e outra mulher bem baixinha, que em linguagem médica seria uma anã. Ele conta: “Quando fazíamos amor tínhamos o mesmo tamanho, porque o tronco dela era normal. Eram só os braços e as pernas que tinham saído muito curtos. Fazíamos amor no chão da sala de TV da casa dela depois que ela colocava a filhinha pra dormir.” Além disso, aos poucos Bostalhão começa a se recuperar do vício, estava apreciando viver sóbrio, embora de vez em quando ouvisse vozes “(...) resmungando na minha cabeça, e muitas vezes o mundo parecia se crestar nas pontas. Mas a cada dia meu estado físico melhorava um pouco mais, eu estava voltando a ser bonito, e estava mais disposto, e, no fim das contas, essa foi uma fase boa.” Depois de tanta barra pesada um pouco de céu azul faz bem para o leitor também...

Por fim, talvez Filho de Deus seja mais apreciado por leitores que já tiveram contato com obras de autores que também trataram de personagens viciados, desvalidos e marginalizados ou estranhos mesmo, como Chuck Palahniuk, Charles Bukowski, David Foster Wallace, Cormac McCarthy e outros. Para Philip Roth “A prosa de Johnson é de um poder e um estilo incríveis.” E Andrew Hubner registrou que “Denis Johnson é um escritor que, como Twain, Hemingway e Ellison, conseguiu apreender a essência da vida americana.” O que não é pouca coisa, convenhamos.