Uma vida doce-amarga
Uma vida doce-amarga
No ano de 2022, comemorou-se o centenário da Semana de Arte Moderna. Entre as publicações do ano, merece destaque a biografia de Tarsila do Amaral, escrita pela historiadora Mary de Priore, intitulada Tarsila – Uma vida doce-amarga (José Olympio, 2022, 144 p). Dada a fluidez do texto, traço típico da autora, bem como o número pequeno – mas suficiente – de páginas, Priore opta por não dividir a obra em capítulos, narrando a vida da pintora de modo a manter a curiosidade acerca da biografada, famosa pelo quadro Abaporu e por seu relacionamento conturbado com o escritor Oswald de Andrade.
De família privilegiada até a pobreza. De um grande vigor até a decadência. A vida de Tarsila nos parece sob o olhar da historiadora realmente doce-amarga. Amores correspondidos e não correspondidos, numa época em que o desquite e o divórcio representavam um grande fracasso para as mulheres. Arte não bem compreendida, num momento de grande efervescência e reinvenção artístico-cultural. Vale lembrar que, embora não tenha participado da Semana de 1922, Tarsila manteve contato com Anita Malfati, Mário de Andrade, entre outros que compuseram o Movimento Modernista.
Casou-se aos 20 anos com um primo rico, André Teixeira Filho, em um casamento arranjado e forçoso. Pouco depois, engravidou e se separaram, pois ele não aceitava bem a relação de Tarsila com a arte. Isso custou à pintora a rejeição de muitos familiares e o falatório da sociedade paulista. Após André, a artista ainda foi abandonada mais três vezes, por diferentes companheiros, sendo um deles Oswald de Andrade, conhecido como oportunista, que a deixou repleta de dívidas...
A sensação que temos ao ler a biografia é de que estamos em uma montanha-russa, em que os altos e baixos da vida da pintora contribuíram para dar-lhe uma força que retirava dos mil tons de suas telas e das amizades que cultivou ao longo da vida. Destaca-se que "Tarsila sofreu a intolerância de uma sociedade que vivia de aparências. Hipócrita. De homens e mulheres machistas. Gente que só reconheceu seu talento e suas qualidades depois que ela sorveu os frutos mais amargos da vida. A lição que Tarsila parece deixar é a de que o sofrimento não abate".
Além de desvalorizada como mulher, engana-se quem pensa que a pintora teve uma vida gloriosa. Ela viveu até seus últimos dias tendo que vender seus quadros sob encomenda, às vezes os oferecendo como moeda de troca. Também a artista foi perseguida por acreditarem estar associada à polícia política de Getúlio Vargas.
De formação católica, segundo Mary del Priore, Tarsila não era revoltada apesar de todos os infortúnios, era gentil, “de uma bondade extraordinária. Nunca deixou de ajudar as pessoas, mesmo quem as abandonou, incluindo os ex-maridos. Dá uma impressão que ela sempre vencia as dificuldades pela fé”, diz a biógrafa em entrevista ao jornal Metrópoles. E é pela fé que a pintora encontra forças para administrar o luto pela neta e pela filha Dulce, desta vez recorrendo ao Espiritismo, com auxílio do médium e amigo, Chico Xavier.
Sem o reconhecimento que merecia, Tarsila termina a vida pobre, em uma cadeira de rodas, vítima de uma cirurgia, e falece aos 83 anos após um procedimento na vesícula, em 17 de janeiro de 1973. Por ironia, sua mais famosa tela, “Abaporu”, é avaliada em cerca de 40 milhões de dólares!!! Comprado em 1995 por US$1,3 milhão pelo empresário Eduardo Constantini, o quadro hoje está no Museu de Arte Latino-Americano de Buenos Aires (MALBA).
Por fim, no anexo do livro, é possível encontrar fotos raras de Tarsila e alguns registros de publicações em jornais sobre sua produção, bem como sobre o seu falecimento. Tarsila não foi uma mulher à frente do seu tempo, ela viveu em um tempo atrasado, ou melhor, com muitas mentes de pensamento tardio.
Leo Barbosa é professor, poeta, escritor e revisor de textos.
(Texto publicado em 12/01/2024 em jornal A União)