Paraíso Perdido - John Milton
Cerca de cento e quarenta anos antes das agitações populares apoiadas pela burguesia francesa que culminou com a decapitação do rei Luís XVI, tiveram os ingleses sua guerra civil e revolução, também desencadeada pelos mesmos interesses, qual sejam, a queda da monarquia absolutista e o triunfo do que hoje podemos chamar de modelo econômico burguês-capitalista (em “A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo", Max Weber explora a relação entre o protestantismo, especialmente o calvinismo, e o surgimento do capitalismo moderno. Weber argumenta que certas ideias e valores do protestantismo, como a ética do trabalho árduo, a busca pela excelência e a vocação, influenciaram o desenvolvimento do espírito capitalista. Ele destaca a noção de "protestantismo ascético" como um fator crucial na formação de uma mentalidade propícia ao capitalismo, enfatizando a ética do trabalho como um meio de alcançar a salvação. Essa conexão entre religião e economia é central na análise de Weber sobre a transformação social e econômica na Europa Ocidental); e foi nesse panorama histórico que John Milton publicou a obra “Paraíso Perdido”, poema épico que narra a rebelião de Satã contra Deus, a criação do mundo e a queda do homem pela desobediência de Adão e Eva no Jardim do Éden.
Paraíso Perdido, com seus 10.565 versos, distribuídos em doze cantos, continua sendo um clássico da literatura, não apenas pelo tema caro à cultura ocidental, mas devido às qualidades literárias que Milton empregou para compor um livro no qual a poesia em língua inglesa é elevada ao mais alto nível estético. Não à toa Milton, ao lado de Shakespeare, é visto como um dos mais magistrais poetas ingleses, e essa relação entre os dois escritores tem uma ligação muito próxima, principalmente por dois motivos: a escrita do poema em versos brancos (versos não rimados que não obedecem a nenhum esquema rítmico fixo ou rígido, diferentemente dos épicos publicados em um período próximo, como A Divina Comédia, Os Lusíadas, Jerusalém Libertada ou Orlando Furioso) e a caracterização psicológica de Satã, que em muito lembra os personagens centrais dos dramas shakespearianos. Este fato literário, inclusive, é um dos temas mais discutidos nas análises do poema desde sua publicação; afinal, seria Satã o personagem principal da obra, em detrimento a Adão, à Eva, aos três arcanjos, a Deus ou ao seu filho, o salvador da humanidade? A resposta é sim, Satã é o personagem mais bem elaborado, aquele o qual Milton pinta com maiores detalhes os traços emocionais que o designam uma das mais realistas figuras da literatura, haja vista seu aspecto complexo e multifacetado, cheio de vingança, ódio e coragem na luta contra as forças celestiais.
As passagens no texto as quais nos são mostrado o que se passa dentro da mente do mais rebelde anjo caído que do céu foi expulso, são através dos seus inúmeros discursos muito bem elaborados retoricamente, que nos lembram grandes oradores, como Cícero, tendo em vista a enorme influência que este poeta e advogado de Roma teve na cultura renascentista e classicista, desde sua redescoberta pelos humanistas italianos, passando pelo período no qual Milton escreveu seu épico. Foi a primeira vez que Lúcifer foi chamado de Satã, embora a associação já existisse em algumas interpretações teológicas anteriores, e a representação de Milton contribuiu de uma maneira marcante para popularizar essa associação.
A erudição de Milton referente aos temas que desde séculos vêm permeando as questões teológicas da doutrina cristã não se restringe apenas aos textos considerados oficiais pela igreja, mas a fonte que o inspirou a escrever diversas passagens da obra é originada do seu total conhecimento da bíblia, como de muitos livros apócrifos, como o de Enoque e o de Tobias, bem como textos em grego (língua na qual muitos destes textos foram escritos nos dois primeiros séculos da nossa era) e em hebraico (Satã em hebraico significa inimigo, assim como Adão significa homem), fazendo do Paraíso Perdido uma exegese pessoal e fenomenal do gênio de Milton.
O fato de Milton ter ditado o épico para um transcritor devido a sua quase total cegueira é uma ironia assaz curiosa da literatura, já que Homero, o precursor do poema épico no ocidente, também ficou cego, tendo ambos a memória como aliada na construção dos cantos.
Em suma, o que pode ser escrito aqui neste breve texto sobre a importância de lermos o Paraíso Perdido é que o poema transcende as questões dogmáticas da religião cristã, sendo a obra um mergulho na condição humana através de uma escrita riquíssima em profundidade existencial e filosófica, fazendo de Milton um dos arautos da poesia universal.