Bar doce lar - J. R. Moehringer

Histórias saborosas regadas com muita bebida, destiladas por um jovem em busca do pai ausente e de um lugar próprio no mundo

J. R. Moehringer - Bar doce lar, RJ, Nova Fronteira, 2007

O título brasileiro desse relato autobiográfico é um velho trocadilho com a conhecida expressão Lar Doce Lar, mas que ficou bem aqui, porque o livro de J. R. Moehringer (nascido em 1964) é leve e perspicaz a maior parte do tempo e traz vários lances engraçados, pontuados por outros melancólicos e por vezes comoventes. Daí que Frank Sinatra, artista favorito de J. R., é constantemente citado por conta de várias canções tristes – ou melancólicas – de seu repertório. Sinatra é a trilha sonora da vida de Moehringer, desse livro. O autor recebeu o prêmio Pulitzer de jornalismo de 2000 por uma reportagem para o Los Angeles Times sobre uma comunidade isolada de descendentes de escravos no Alabama. Mas se tornou mais conhecido nos meios literários alguns anos depois, com a publicação de The Tender Bar: a Memoir (2005).

Bar Doce Lar ganhou um subtítulo extravagante da Nova Fronteira: As memórias de um menino adotado pelo bar da esquina, que é mais ou menos isso mesmo o que se passou com J. R. Moehringer. Em 2021 foi levado para as telas de cinema por meio de uma simpática versão cinematográfica dirigida por George Clooney; foi através do filme Bar Doce Lar que tomei conhecimento do livro. Na tradução espanhola a obra se chamou El Bar de Las Grandes Esperanzas, que obviamente remete para o escritor Charles Dickens. Dickens era o nome do bar em Manhasset, na costa norte de Long Island, Nova York, onde trabalhava o tio materno do garoto, Charlie, a quem ele era bastante apegado. J. R. foi criado pela mãe solteira porque o genitor a abandonou logo após o nascimento do menino.

Mais crescido, o garoto sabe que o pai ausente é um locutor de Nova York que tem um programa de rádio que ele procura sintonizar sempre, até o dia em que a voz sai do ar e J. R. fica sem ninguém para ouvir, perdido, decepcionado. O New York Times Book Review escreveu que “Bar Doce Lar é uma bela carta de amor a um pai ausente. É um melancólico romance entre um menino e o bar da esquina, cheio de fumaça de cigarro e meio triste como um disco de Sinatra.” Na ausência do pai, o tio Charlie e os amigos dele do bar Dickens, todos tipos singulares, passam a desempenhar um papel cada vez mais importante em sua vida, juntamente com a mãe, que ele adora. A avó materna e a mãe são duas das heroínas de J. R. Quando ele se torna rapaz é a mãe que o estimula a estudar Direito em Yale, mas eles não têm dinheiro para o curso, terão de se virar. Ele arranja trabalho em tempo parcial numa livraria: conhecer Bill e Bud, os dois curiosos sócios do estabelecimento, torna-se um dos melhores trechos do livro. J.R. se diverte e aprende muito com ambos. E deles ganha uma porção de livros que acreditam ser fundamentais para sua educação.

Mas ele não esquece o pai, prossegue em sua busca, procura reencontrar-se com ele, que mais ouviu no rádio do que viu pessoalmente. Prossegue também narrando saborosas histórias de sua vida, de seus amigos do bar, de seus singulares parentes maternos, cada uma delas ocupando um capítulo dos mais de quarenta desse volumoso livro (são 432 páginas). E chegamos à sua entrada na universidade: é aceito por Yale, ganha uma bolsa para estudar Direito. Logo de início sente não apenas as diferenças de classe social, seus colegas de quarto e classe são todos ricos, mas também que seus conhecimentos em Humanidades têm de melhorar bastante. Não vai muito bem nos estudos. Tira notas baixas (conceitos D) em Literatura, apelida o temido professor de Lúcifer e se desanima ao ver que tem de ler e se aprofundar muito em Homero, Ésquilo, Sófocles, Heródoto, Platão, Aristóteles, Tucídides, Virgilio, Dante, Shakespeare, Milton, Tomás de Aquino, Goethe, Wordsworth, santo Agostinho, Maquiavel, Hobbes, Locke, Rousseau, Tocqueville… Nossa! Porém não se dá tão mal em Filosofia porque, como ele mesmo diz, nessa disciplina não há respostas certas. Pelo menos isso...

Ali na universidade se apaixona por Sidney, estudante rica que namorava outros rapazes além dele, mantendo com ela um romance cheio de idas e vindas. Sempre que ela o deixava ele corria para o bar Publicans – nome que substituiu Dickens – para encher a cara e ouvir os conselhos do tio Charlie. Descuida um tanto dos estudos, mas ainda assim consegue se graduar. No entanto, não deseja se tornar advogado, o que frustra um tanto a mãe: quer ser escritor, jornalista, algo assim. Enquanto isso, para não depender tanto dela, arranja emprego numa loja de artigos domésticos e acaba se tornando o melhor vendedor ali, porque enrola as compradoras com inúmeras histórias sobre os objetos à venda. Contar histórias é sua especialidade... Prossegue também com seu sonho de trabalhar no New York Times, envia para lá seu currículo e cópias de artigos publicados e um dia recebe um telefonema para uma entrevista naquele que ele chama o melhor jornal do mundo.

É aprovado no Times e uma nova vida parece começar para J. R. Mas ele é apenas um estagiário ali, encarregado de comprar sanduíches e café para os redatores mais ilustres, providenciar papel carbono para as cópias dos artigos, além de executar outras pequenas tarefas enquanto aguarda a grande chance de sua vida. Que é tornar-se efetivamente um repórter ou redator de verdade no Times – ou em outro veículo de comunicação –, como imaginava desde o início, o que vai demorar um bocado de tempo para ocorrer. Continua frequentando o Publicans cada vez mais, bebendo cada vez mais, e ali ouve até mesmo os fregueses comuns darem palpites sobre William Faulkner e O Som e a Fúria. Vai, pois, acrescentando novas histórias às inúmeras que já narrou, apresenta novos personagens e dá mais detalhes sobre outros que já conhecíamos, como o policial Bob Tira, num trecho saboroso do livro. Como sempre, continua enchendo a cara com muita, muita bebida. Até tudo desembocar no fatídico 11 de setembro de 2001, mas aí a história já é outra... É o fim.