"Holly"
“Os monstros que despontam para a luz são mais temíveis do que a própria escuridão”. No universo kinguiano, se existe um personagem que galgou por seu espaço foi a excêntrica e proeminente Holly Gibney. Sua primeira aparição se deu em 2014, como coadjuvante no ótimo Mrs Mercedes, obra inaugural da trilogia Bill Hodges escrita por Stephen King, composta ainda por Achados e Perdidos (2015) e O Último Turno (2016). Depois disso, a excelsa investigadora roubou a cena ao atracar na segunda metade de Outsider (2018), até conquistar o protagonismo no conto Com Sangue, que dá nome à antologia que marcou presença nas prateleiras das livrarias em 2020.
Com uma trajetória tão notável, tornando-se uma personagem recorrente, despertando a cada aparição ainda mais fascínio do fiel leitor, estava claro que a senhorita Gibney merecia um livro solo para chamar de seu. A espera enfim cessou em setembro de 2023, com o lançamento de “Holly”, uma narrativa circundante que bem poderia ser caracterizada pela frase acima, utilizada para abrir a análise. Afinal o leitor está diante de um thriller que se torna ainda mais aterrorizante pela ausência de elementos sobrenaturais, mostrando como o mal pode ser uma condição essencialmente humana.
A narrativa se desenrola de maneira alinear, mesclando passagens do presente (2021) com o passado, começando por evocar o desaparecimento de um professor universitário, ocorrido em 2012. O enredo não se preocupa em ocultar quem são os sequestradores, um ominoso casal. Altamente calculistas, os dois parecem sempre estar um passo à frente, sendo altamente hábeis em utilizar a aparência inofensiva, aliada à boa posição social, para camuflar os intentos nefastos.
Quanto à protagonista, agora de maneira não tão inabalável, segue sua incessante jornada na agência “Achados e Perdidos”. A fase não é das melhores, isso porque seu sócio vem lidando com as complicações da Covid, enfermidade também responsável pela recente morte de sua mãe, com quem mantinha um relacionamento deveras conflituoso.
Buscando um escapismo para o luto, a investigadora embarca no desafio de tentar desvendar o intrigante desaparecimento de uma garota. O caso desafia suas habilidades, obrigando-lhe a manter a percepção aguçada. No limite, recorre ao trabalho para sobrepor os dramas e com as pistas oferecidas pelas testemunhas, não demora para o seu faro indicar a existência de um estranho padrão de desaparecimento, sendo a jovem Bonnie Dahl apenas mais um alvo do serial killer que vem agindo na região sem levantar suspeita da polícia.
“Holly” oferece ao leitor a oportunidade de interagir com uma versão mais amadurecida da protagonista, padecendo de problemas existenciais. A sequência de sequestros é bem articulada pelo autor, desenvolvendo os personagens na medida certa, com precisão, a ponto do leitor se apegar a eles, sendo alvejado pelo cruel destino imputado, diante da trágica forma como perderam a vida.
Bárbara e Jerome, figuras carimbadas dentro do universo Holly, também têm seu espaço na trama. E existe espaço até para o saudoso Bill Hodges, mentor da investigadora e que permanece presente como uma constante fonte de inspiração, não sendo raro a protagonista recorrer ao passado para assimilar os eventos do presente. Bill a “ajuda” a seguir focada, sem descarrilhar, desenvolvendo novos artifícios quando suas cartadas parecem esgotadas ou é preciso debelar ainda mais a chamada zona de conforto.
Quando a história alcança seu desfecho, o leitor é invadido pela sensação de ter se debruçado sobre um thriller bem estruturado, enfatizando um pouco do que existe de pior na humanidade. E para isso, não é necessário idear vilões como o temível palhaço pennywise, recorrer ao assombroso Hotel Overlook ou a um cemitério indígena capaz de trazer os mortos de volta. Basta apenas ser essencialmente humano e tracejar o mundo à nossa volta com uma pitada verossimilhante.