Resenha: "Fundamentos do direito".
A modernidade jurídica é recheada de rupturas e continuidades que, discordando e concordando com os demais direitos anteriores, sustentam um baseado na pessoa humana, antropocêntrico. A importância de se compreender tal direito é simples: ainda é a base do direito contemporâneo. O jurista francês Léon Duguit, ao escrever o livro “Fundamentos do Direito”, discorre sobre esse direito moderno no contexto da novíssima revolução francesa burguesa que aconteceu no momento em que o autor escrevia a obra, sendo o momento perfeito para discorrer sobre o tema, tendo em vista que a queda da bastilha em 1789 foi justamente o marco fundador da modernidade.
A escrita simples e objetiva incentiva o leitor a não somente ler e compreender, mas também ir além e realizar suas próprias conclusões sobre os diversos temas apresentados e tecidos pelo autor. Desde a diferenciação entre direito objetivo e subjetivo até a subdivisão do direito público, Duguit consegue manter o foco e seguir uma linha coesa de raciocínio para um tema tão essencial para os novos estudantes de direito, que vivem em uma era de constante mudança e transformação.
Primeiramente, antes de adentrar no âmago da questão – os fundamentos do direito –, León começa definindo para os leitores o que é direito e, para isso, divide-o em dois: objetivo e subjetivo. O objetivo é aquele direito que tutela a vontade geral – como diria Rousseau –, isto é: o bem-comum daquela comunidade, enquanto o subjetivo é aquele que tangencia as vontades individuais, os atos de vontade – que devem sempre respeitar a geral, de acordo com o autor –. A influência do direito positivado fica evidente nesse contexto, pois prevê sanções na ocasião de descumprimentos da norma vigente, obrigando os indivíduos a obedecerem ao poder político unificado estabelecido.
Nesse sentido, é evidente a predominância que o autor coloca o direito objetivo do subjetivo, sendo o segundo advindo do primeiro e, consequentemente, dependente do mesmo. Na visão daquele que vos escreve, o ponto de vista de Duguit, apesar de ser revestido de uma aparência de democracia e nobreza, esbarra em um grande problema: o mito da vontade geral. O direito objetivo é o bem-comum, entretanto, quem define o bem-comum? A vontade geral. E o que é a vontade geral? O bem-comum. A lógica do autor é cíclica e necessita ser interpretada a partir de uma visão específica para fazer sentido, visões essas bem específicas de grupos bem específicos. Portanto, ao percebemos que a classe dominante no contexto era a burguesa, é lógico compreender que o bem-comum moderno é, na realidade, o bem do burguês.
O livro continua provocando o leitor com a hipótese de haver direito sem autoridade competente – ou seja, sem poder estatal – e qual seria o fundamento desse direito sem poder estatal. Por um lado, escritores renomados como Hegel e Ihering, ao inferirem que direito é lei e que lei é a vontade expressa do soberano, afirmam que não há direito sem Estado. Por outro lado, para Duguit a relação entre direito e Estado é diferente, porque ele vê a lei como soberana e anterior ao mesmo, o que, como já dizia o contratualista John Locke1, dá espaço para direito de revolta da população contra a tirania. Olhando sob uma perspectiva histórica, a revolução americana de 1783 nos mostra a importância de haver esse direito, porque a partir do momento em que o Estado não está cumprindo com seus deveres – às vezes ferindo os direitos do seu próprio povo. É não somente direito de a população depor o tirano, mas dever da mesma.
Assim como León, vejo ser impossível reduzirmos direito à lei e ao Estado; ao olhar sob uma perspectiva antropológica, é evidente que existem diversas formas de existência de sociedades humanas: o povo hebreu, por exemplo, possuía códigos de conduta determinados por tradições, leis orais – o Talmud – e/ou qualquer outro dispositivo competente que não dependia do Estado necessariamente. No fim, reduzir direito à Estado é perder a grandiosidade do saber jurídico das grandes civilizações medievais e antigas; é esquecer nosso próprio passado.
O autor prossegue no tema direito-Estado afirmando que há duas principais linhas de pensamento sobre: as doutrinas do direito individual e as do direito coletivo. Porém, antes de aprofundar-se nas diferenças, Duguit afirma que há um ponto em que ambas concordam: seus fundamentos. Para ambas, o homem, ao nascer, desfruta de certos direitos subjetivos, que constituem os direitos individuais naturais.
As diferenças começam no princípio de todas as coisas, pois, primeiramente, o individualismo afirma que o homem nasce livre: desfruta do direito de desenvolver plenamente as suas faculdades físicas, intelectuais e morais. Assim, infere-se que: se os homens nascem livres e iguais – detentores de certos direitos individuais inalienáveis – e se para preservá-los o homem necessita viver em sociedade – renunciando uma parte da sua liberdade –, então o direito subjetivo advém do objetivo, porque a sociedade passa a existir simplesmente para preservar o que já éramos.
Nessa seara, o filósofo contratualista John Locke2 faz uma ponte com o tema, pois em sua obra ele afirma que, no Estado de Natureza, os homens eram livres, iguais e racionais, estando todos sob a lei natural e sendo os executores da mesma. Entretanto, devido à imparcialidade nos julgamentos, os Homens entram em guerra, fazendo-os entrar em um pacto no qual eles renunciam sua liberdade – direito subjetivo – para garantir julgamentos justos – direito objetivo –. A igualdade, portanto, se torna elemento essencial para a doutrina individualista, posto que os homens são todos iguais em essência – direitos e deveres –, não sendo direito em si, mas base de todos os outros. Para finalizar essa doutrina, tem-se o universalismo da lei, esse que se configura como a padronização jurídica dos povos e nações, que, na minha visão, pode ser algo extremamente perigoso se não for encarado com cautela.
Em primeira análise, compartilho o mesmo entendimento de Kant, que nos afirma que existem duas facetas do direito: o puramente empírico – direito positivo – e a sua cabeça – direito natural –. O direito positivo é, basicamente, as leis em si mesmas – código civil e penal, por exemplo –, enquanto o direito natural é a justiça e igualdade. O direito positivo, evidentemente, é passível de mudança; é, em essência, fruto de seu tempo e povo, contudo, o direito natural não pode mudar a nosso bel prazer; deve ser o mesmo em qualquer época e localização. Todos, embora de forma diferente, devem buscar a justiça e igualdade – não há desrespeito a forma de vida de outros povos, mas sim resguardo a dignidade da vida humana em toda e qualquer circunstância –.
As doutrinas individualistas encontram seu ápice na declaração dos direitos humanos de 17893, na qual os direitos do poder do Estado são limitados e os homens são valorizados pelo simples fato de serem humanos. A crítica a essa declaração é objetiva e, de certa forma, correta: existem diversa contradições nessa declaração: as mulheres estavam sendo discriminadas, os escravos das colônias continuavam sendo considerados objetos, et cetera. Entretanto, percebe-se que o problema da declaração não está na declaração em si, mas na forma na qual foi aplicada, ou melhor, na forma na qual não foi praticada.
O individualismo, no entanto, acaba encontrando diversas outras críticas pelo caminho. A primeira crítica, que o autor realiza, baseia-se na condição natural do homem, pois, para o individualismo, o homem natural nasce livre, racional, igual e autônomo; mas, supostamente, essa situação é hipotética, ou seja, é uma abstração completa da realidade, porque os homens nascem, na realidade, na coletividade; em sociedade. Tem-se, então, que: se a filosofia do direito deve se basear no homem natural, e se o homem natural nasce no coletivo, então a doutrina correta seria a doutrina social.
A segunda crítica tangencia a igualdade entre os indivíduos, porque, afirma Duguit, a liberdade e a igualdade surgem a partir do contexto social. Aristóteles diz que somos “animais políticos”, por isso não faria sentido afirmar que os homens nascem livres e iguais em direito, mas sim que nascem partícipes de uma coletividade e sujeitos, assim, a todas as obrigações que subentendem a manutenção da vida coletiva. Não há igualdade na prática e todos devem ser tratados de forma diferente, ou seja, o estado jurídico deve se alterar a partir da situação social de cada um. O individualismo, ao buscar um direito ideal e absoluto, não seria real.
As doutrinas do direito social, em contrapartida, são aquelas que têm a sociedade como objeto, não os indivíduos, afirmando, portanto, que é do direito objetivo que vem o subjetivo, esse que deriva diretamente das obrigações sociais dos indivíduos. De acordo com essa visão, o Homem nasce em sociedade e deve ser submisso a ela e os direitos individuais são sempre advindos dos deveres comuns. Para León, as doutrinas sociais poderiam ser caracterizadas como doutrinas socialistas, isto é: fundamenta o direito no corpo social e nas obrigações sociais do indivíduo. Nesse sentido, compactuo com essa doutrina no tocante as obrigações sociais do ser humano, pois é evidente que precisamos uns dos outros: a máxima liberdade só pode ser alcançada em sociedade – ou senão, entraríamos na sociedade civil de Rousseau, na qual os homens se relacionam sem lei, causando Guerra –. Entretanto, não posso deixar de perceber que ela, ao ser comparada a primeira, não se mostra verídica. Vejamos:
Os argumentos usados por aqueles que defendem as doutrinas sociais são belos, de fato, mas facilmente passíveis a serem refutados. No que tange o primeiro argumento utilizado, o homem – apesar de, sem dúvidas, já nascer em sociedade – não necessita estar isolado fisicamente dos outros para constatarmos que, se o estivesse, continuaria livre, racional e autônomo, um simples exercício mental já nos constata isso – “não preciso estar no Estado Guerra para querer evitá-lo”, como já dizia Kant 4–. Em continuidade, é realmente necessário a sociedade – não o Estado, vale ressaltar – para manter a liberdade e a igualdade; entretanto, essa afirmação já é uma refutação em si mesma: se precisamos estar em comunidade para manter essa igualdade e liberdade, então já éramos assim antes e simplesmente queremos manter o que já somos particularmente.
Mas, voltando à obra, León continua discorrendo a partir de uma indagação: o que une esses homens que já nascem em sociedade? Nesse sentido, os indivíduos se veem como seres sozinhos, esses que possuem anseios e desejos individuais, que só podem ser alcançados em comunidade. Assim, o nome dessa afeição que une os homens para alcançar seus desejos é a solidariedade social. Entretanto, esses indivíduos só se solidarizam com os próximos e ficam presos a pequenas hordas e famílias, só podendo alcançar grandes proporções a partir de laços comuns, como a religião, tradição, lutas, derrotas e vitórias.
A solidariedade social, para o autor, é dividida em dois: semelhança e trabalho. Enquanto a solidariedade social por semelhança é quando os indivíduos se unem porque tem necessidades iguais e se unem para realizá-las, a pela divisão de trabalho é quando os homens possuem desejos diferentes que necessitam trocar serviços para realizá-los (trabalho). Essas solidariedades possuem diversas formas e se alteram durante o tempo e espaço, sendo que o segundo tipo vai prevalecendo sobre o primeiro, pois os homens vão se tornando diferentes entre si. Daí, portanto, surge o direito objetivo: não praticar nada que possa ferir essa solidariedade sob qualquer de suas formas e suas consequentes evoluções.
A lei positiva, explica o livro, para ser legítima, deve ser a expressão e o desenvolvimento deste princípio. Vendo por essa perspectiva, a regra de direito deve ser social, pois as penas são aplicadas a todos, e, ao mesmo tempo, individual, pois devem aplicadas individualmente: cada homem é diferente e deve cooperar de maneira individual e diferente na sociedade. Esse ideal, evidentemente, contraria a igualdade absoluta do iluminismo e leva-nos a acreditar que o direito pode ser dividido em uma parte mutável, porque cada sociedade manifesta a solidariedade de forma diferente, assim é necessário entender aquele povo, lugar e tempo para achar qual a regra mais adequada para cooperar com à estrutura na qual se encontra. E também imutável, pois toda sociedade implica solidariedade, assim, todo direito objetivo irá visar cooperar com ela e suas diversas manifestações. O sociólogo Émile Durkhein,5 para complementar, afirma que existem duas solidariedades também, a mecânica e a orgânica; para Durkhein, a mecânica é a simples pré-capitalista e a orgânica é a complexa capitalista.
As doutrinas sociais, em minha visão, não se mostram as melhores teorias para explicar o fenômeno social; gabando-se de racional e evoluída, não conseguem provar seus pontos mais básicos com coesão. Primeiramente, afirmação de que os direitos individuais vêm a partir dos deveres desse indivíduo no contexto social nos levam a uma indagação importante: quem define os seus deveres para a comunidade em questão? Se quanto mais impacto social se tem mais direitos e/ou direitos se tem, então aqueles não tem nenhum impacto social não possuem direitos e/ou deveres também? No fim, será a classe dominante do momento que irá definir isso.
Os questionamentos não param por aí, afirmar e incentivar que os homens se reúnem somente para alcançar seus próprios objetivos nos leva a uma sociedade de egoístas que não hesitariam em delatar seus próximos para alcançar seus afetos. Beccaria, em Dos Delitos e Das Penas, explica que um ambiente no qual a delação premiada, fazendo um paralelo, – um sujeito ativo buscando seus próprios interesses – acontece, a traição e a violência são normalizadas.
León prossegue explicando que conceitos de direito e autoridade política, embora inegavelmente ligados, não são iguais e necessitam ser diferenciados com precisão para uma análise correta do tema. A ligação se mostra quando se observa a organização jurídica hierárquica de inúmeras sociedades: sempre estão imbuídas de níveis de poder e de monopólio da força; a noção de Estado, dessa forma, deve ser recuperada.
Estado, diferente do que os modernos teorizam, é a desigualdade de poder que acompanha todos os povos e nações: governadores e governados – embora em níveis diferentes, a natureza dessa ideia está presente em graus diferentes –, tendo os governadores autoridade para criar e aplicar normas pelo monopólio da força, ou seja, uma autoridade política. A história do povo hebreu, complementando pode ser dividida em dois momentos: a dos juízes e a dos reis; embora na época dos juízes não houvesse Estado – no sentido moderno –, havia uma clara autoridade política e militar dos juízes que instituíam certas campanhas militares em determinados momentos. Posteriormente, quando Saul assume o poder (por volta de 1000 a.C), surge uma instituição jurídica que consolida um poder que há havia em Israel, daí se tem que a autoridade política pode não ser muito intensa, mas de alguma forma sempre está presente.
Nessa seara, o estudo da origem do Estado emerge basicamente em cima desse poder político, pois desde que o homem começou a viver em sociedade, e houve autoridade política, ele se questiona: quem é ou não legítimo de poder mandar e desmandar? A legitimidade do poder político, acaba por fim, baseando-se em duas principais teorias que explicam o surgimento do Estado: Estados teocráticas e democráticos.
Teocráticos. São aqueles que buscam legitimar o seu poder político na figura de Deus, porque se todo poder emana de Deus, então Ele, de alguma forma, escolhe indivíduos ou grupo de pessoas para exercê-lo. León não reduz esforços em descartar as teorias teocráticas, pois, de acordo com ele, são anticientíficas e devem ser somente vistas como um museu a céu aberto; um retrato de uma época de outrora. Ao contrário do que se pensa, elas não levam necessariamente ao absolutismo, pelo contrário, é totalmente viável haver dispositivos populares que limitem o poder instituído. Para complementar, São Tomás de Aquino6 – um teocrático por essência – escreve sobre o direito de revolta, afirmando que, se o Rei não segue a Lei Natural – justiça –, seus súditos têm o direito de lhe depor, ou seja, a participação popular e a teocracia podem, em alguma medida, caminhar juntas sem problemas. Entretanto, essa seara não é pacífica, por isso, dividiu-se ela em duas categorias: sobrenatural e providencial.
Por um lado, as sobrenaturais afirmam que Deus age de forma direta e recorrente na figura do Príncipe, e que esse deve somente prestar contas àquele que lhe deu o seu poder: o próprio Deus. A máxima figura que representa essa ideia é a de Luís XIV e XIV da França dos séculos XVII e XVIII. Por outro lado, a providencial, muito mais crível que sua irmã, crê que os acontecimentos e as vontades humanas estão todas submetidas a soberania de Deus e que Ele age a partir uma direção invisível.
As críticas realizadas pelo autor são rasas, e isso é admitido, pois, como já havia dito, essas doutrinas seriam anticientíficas e não dignas de serem ao menos refutadas; servem somente para estudantes de história. Mas a verdade é que: afirmar que teoria “X” é irracional e não se dar ao trabalho de refutá-la é, no mínimo, tão irracional quanto. León não compreende os nuances e fundamentos que existem na metafísica, e por isso, falha em explicar esse assunto tão importante.
As doutrinas democráticas, ao contrário, são aquelas que explicam a legitimidade do poder político a partir do povo, ou seja, todo poder emana do povo: a vontade geral. Ao contrário do que se pensa, provoca o autor, as teorias democráticas nem sempre valorizam a liberdade; na realidade, é muito comum esses regimes de poder levarem a um totalitarismo e, consequente, a perda de todos os direitos individuais.
A Alemanha nazista, por exemplo, justificou o massacre de mais de cinco milhões de judeus visando um bem comum coletivo, porque, de acordo com o Estado Alemão da época, eles estariam estagnando a nação – o que é, evidentemente, um absurdo –. Vê-se, portanto, que a democracia nem sempre leva a república – tanto no sentido latino quanto no contemporâneo –, e deve ser encarada com muita sobriedade, como já dizia C.S Lewis7: “uns bons goles na fonte da razão ajudam a apagar o fogo do coração”. Não devemos nos enganar: parlamentos podem ser tão autoritários quanto reis e rainha.
A legislação francesa de 1789 a 1791, ao afirmar que a soberania pertence à nação e que nenhuma facção do povo nem indivíduo algum pode atribuir-se ao exercício dela, é dogmática e, desse jeito, se parece quase como uma religião e, por ter esse caráter imutável, deve ser descartada; não aceitaria questionamentos. Os motivos são simples: a soberania da coletividade implica que essa possui uma personalidade – o que não massa de um mito, da mesma forma que o contrato social –; e mesmo se fosse real, por que essa vontade seria superior às vontades individuais?
Não podemos esquecer que, na prática, a vontade geral é, basicamente, a vontade da maioria. Daí se tem, novamente, uma ditadura: o direito divino de Luís XIV tornou-se no direito divino do povo. Nesse sentido, concordo com Duiguit no que diz respeito a crítica, não ao conteúdo dessa, mas a ela em si; pois também creio ser absurdo que haja um poder nas mãos do governo que possa retirar os direitos individuais inerentes à pessoa humana.
Dessa forma, o autor vai aos poucos construindo sua própria forma de encarar o fenômeno jurídico chamado Estado. Para ele, como já havia dito anteriormente, ambas as doutrinas falham em explicar a socialidade humana; não são baseadas em fatos concretos, mas em casos hipotéticos de uma realidade distante. A fundamentação que realiza em prol do seu ponto de vista é simples e eficaz: o homem é um ser que necessita do outro para alcançar seus objetivos – solidariedade por semelhança e trabalho –, e isso é inevitável – é inevitável a autoridade política, sempre haverá um dominador e um dominado, como já foi falado anteriormente –. Portanto, é necessário acharmos a melhor forma de realizarmos essa socialidade factual.
A corrente filosófica utilizada aqui, e por outros autores também – Beccaria, por exemplo –, é o chamado utilitarismo, que pode ser resumido na máxima: todas as ações humanas devem ser, em última instância, racionais e úteis; não há espaço para grandes abstrações. E para compreendermos melhor a manifestação jurídica desse Estado utilitário, devemos o encarar como uma personalidade jurídica, ou seja, um sujeito que detêm direitos – o imperium (soberania), isto é, o direito de fazer valer a lei pela força – e deveres – resguardar o telos do próprio Estado –.
A construção dessa personalidade jurídica se compõe em três fatores: a coletividade, o território e governo. Juntando-se esses fatores, teoricamente, se formaria um Estado de direito; entretanto, o que se vê são governos existindo onde não há povo e povos existindo onde não há governos. Essas contradições, como estudante de direito, admito, me fazem questionar se a formação do Estado realmente se dá por esses três fatores que o autor apresenta.
Os fins desse Estado factual, continuando, é justamente realizar esse direito, isto é, realizar a Herrschaft: a soberania. Mas, antes de adentrarmos ao assunto, precisamos resolver o problema de nomenclatura gerado na contemporaneidade. Soberania, para a época que estamos estudando, era a faculdade do Estado de cumprir com seus propósitos estabelecidos. Agora, para realizar essa faculdade, divide-se suas funções em três instâncias diferentes: legislativa – a criação das leis que provêm de outras leis –, jurisdicional – resolve os litígios que envolve essas leis criadas – e administrativa – consuma os atos jurídicos –.
Para finalizar a obra, o autor separa o direito em duas searas: público e privado. O direito público é aquele que rege ao Estado, aos governantes, seus agentes e suas relações recíprocas. É nesse direito que encontramos a soberania e que podemos verificar que o costume não cria direito, somente o verifica. No que se relaciona a ele, existem dois modelos que se pode seguir: o inglês e o francês; os modelos, vale ressaltar, diferem na seguinte questão: quais seriam as fontes legítimas do direito, os costumes ou a lei positiva?
O modelo inglês, também conhecido como commow law, é aquele que prioriza os costumes às leis propriamente ditas. Nesse contexto, a formação da norma no Reino Unido não aconteceu a partir de um ato constitutivo no qual os representes do povo formulam um documento chamado constituição que ditaria as leis fundamentais daquele Estado. A constituição inglesa surgiu aos poucos a partir da jurisprudência acumulada dos vários juízes.
O modelo francês – civil law –, é justamente o contrário: as leis são criadas e os costumes vem para as consagrar como tais. O código civil napoleônico de 1804 foi o início dessa lógica, antes, o conteúdo dessas leis era tutelado pelas comunidades locais e suas tradições; sendo móveis e fluídos. Paolo Grocci8, ao falar sobre o código de Napoleão em Mitologias jurídicas, divide a esfera jurídica em duas: a de direito e a da lei. A do direito é aquele advindo dos costumes enquanto a da lei é aquele advindo dos Estados recém-formados. Nesse paradoxo, afirma Grocci, surge um dos maiores desafios da era moderna: a absorção do direito pela lei; e, nesse âmbito, concordo com tudo que Paolo fala: precisamos ter leis positivas, é claro, mas negar à sociedade seu direito de desenvolver é contrário, a meu ver, a socialidade.
O direito privado é o conjunto de normas escritas e consuetudinárias que regem a vida comunitária do cidadão. Durante muito tempo, o direito privado limitou-se a ser tutelado pelos próprios costumes de cada povo, entretanto, com a substituição da loy pela lex – como argumenta Grocci 9–, esse direito começou a ser cada vez mais tutelado pelos códigos estatais; perdendo sua mobilidade que deveria ser inerente a si.
Em resumo, as ideias de León Duiguit são um ótimo panorama para a iniciação do estudo da teoria política do direito. Suas proposições permitem esclarecimentos importantes para nos situarmos no mundo direito atual. As questões são diversas: abordou-se desde à concepção do ser humano histórico até as divisões do direito público e privado. Para finalizar essa resenha, percebo, a partir de tudo o que o autor explicou, que tal obra nos possibilita ver os erros e acertos do passado e do presente. Em uma nação marcada por regimes cada vez mais instáveis, é necessário revermos as bases do direito que utilizamos e, eventualmente, o modificarmos.