Vivências educacionais, livro sobre prática educacional de Silas Corrêa Leite
RESENHA
Uma reflexão sobre o ensino e o futuro das gerações
Adelto Gonçalves (*)
I
“Gente, passei muitos anos sentado em cadeiras chatas, de salas de aulas de escolas públicas periféricas, sendo eterno apaixonado por minhas mestras, para então, e só então, sonhar em poder ser alguém na vida, já que, para o pobre, a única escada para a ascensão social é mesmo a escola. Portanto, um lugar sagrado, camaradas, uma catedral. Acreditem nisso”.
Estas palavras constam do segundo dos 29 artigos, mais uma introdução, que compõem Vivências Educacionais: de educador para educador (Cotia-SP, Editora Cajuína, 2023), novo livro de Silas Corrêa Leite, professor, poeta, contista, romancista, letrista, bibliotecário, desenhista, jornalista comunitário, ensaísta, membro da União Brasileira de Escritores (UBE) e blogueiro premiado, autor de vasta obra publicada.
Exemplo perfeito do que argumenta, o articulista faz aqui a defesa da importância do professor presente fisicamente numa sala de aula e seu livro constitui, desde já, uma arma de defesa contra a proliferação do ensino a distância que está ajudando a enriquecer grupos econômicos, mas que tem causado prejuízos notórios não só para a educação infantil como para o ensino universitário. Enfim, o que há é uma pobreza de aprendizagem que vai impedir ou dificultar para crianças e jovens a busca de oportunidades que os preparem para uma vida com qualidade e dignidade.
Como observa Querte Teresinha Conzi Mehlecke, doutora em Informática na Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com pós-doutoramento em Inovação Pedagógica pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), na apresentação que escreveu para este livro, os recursos midiáticos são bem-vindos e “fazem uma diferença na aprendizagem”, mas, se não houver qualificação dos professores, essa metodologia “será apenas mais um recurso a ser utilizado como repositório de informações”. E adverte, lembrando que, ao se utilizar uma sala de aula virtual somente com este objetivo, “a tecnologia não fará a diferença na formação da competência dos estudantes”.
Basta ver que, há uma ou duas décadas, uma sala presencial com 50 ou 60 alunos já era considerada superlotada, mas hoje as salas virtuais comportam, em alguns casos, até mais de mil alunos. Se o professor já encontrava dificuldades àquela época para estimular o aprendizado entre seus poucos (?) alunos, o que dirá hoje diante de centenas, ainda que de maneira virtual? Obviamente, essas mudanças têm permitido uma redução significativa de custos para as empresas educacionais em suas folhas de pagamento e em espaço físico, pois levam em conta apenas o lucro e não o aprendizado dos alunos. É verdade que oferecem cursos a distância a preços bem menores e acessíveis a muitos, mas essa perda é compensada pelo número infinito de alunos a que podem chegar.
II
O leitor, porém, neste livro de Silas Corrêa Leite não irá encontrar a análise de questões mais recentes como estas, mas textos que rememoram um tempo em que a presença do professor na sala de aula era inquestionável. E fazia dele um pai postiço dos alunos, num trabalho cansativo que fazia do giz, da lousa e da saliva os seus instrumentos de trabalho.
É o que o autor faz no texto “O eterno recomeço (Sampa geração 450)” em que recorda o dia em que encontrou na rua Augusta, no centro velho de São Paulo, uma moça, com livros e cadernos nas mãos, que fora sua aluna e era chamada por ele de Maria Cebola. E ela lhe contou que se tornara educadora porque tomara a vida do professor como exemplo de luta.
Segue um pouco da reflexão que o autor faz sobre sua profissão: “(...) Meu Deus, o que a docência na escola pública me tornou! Ganhando mal, o holerite-cebola (você abre e chora), a propaganda enganosa dos insensíveis, ganhando menos do que um policial e ainda assim tentando não deixar cada sala de aula ser uma espécie de micro Febem, numa biboca qualquer, de uma periferia S.A. daquela desvairada Sampa de quase 450 anos”. E, mesmo assim, com seus conselhos, fizera daquela ex-aluna uma pedagoga feliz com o que a vida lhe propiciara, a ponto de levá-lo às lágrimas.
III
Em outro artigo, “Alunos, pais e sociedade consumista: ambições materiais”, Silas Corrêa Leite observa que “o professor, às vezes mal remunerado e sempre sob alce de mira de mídias mirabolantes (...), recebe a cota humana para o ano letivo a partir de falências públicas e de resíduos sociais, o ser humano enquanto aluno cada vez menos formado enquanto ser, filho, cidadão e pessoa, e o professor tem que estar ali para ser alvo, para pensar rápido, sacar lances, domar feras sem ser opressivo e ditador, mas sabendo que a clientela discente é sim, ano após ano, mal preparada a partir do lar, de pais com problemas, de meios danosos, de ambições outras que não a de ser, mas a de ter, e assim não adquirir conteúdo e não estar preparado (e interessado) nesse enfoque. E assim perdem todos. A escola, o mercado, o aluno que vai enfrentar a concorrência quando será só mais um dígito na linha de produção e na linha de crédito”.
Por aqui se vê o que espera o leitor neste livro que é resultado de quem dedicou a vida quase inteira à tarefa de dar aulas em escola pública e, geralmente, na periferia de uma grande cidade, como na comunidade do Morumbi, em São Paulo, e aprendeu a falar a linguagem da juventude, como se pode constatar neste trecho do artigo “As escolas não ensinam, mas deveriam ensinar”: “Quem estuda muito vira chefe, vai acabar dando ordem, e mesmo o patrão vai pegar leve com ele, sacou? Aliás, quando não estuda vai ser o peão na escala que gira adjacente à triste relação capital-trabalho. E o patrão não respeita quem fala mal, escreve mal, fala gírias, usa roupas berrantes, é uma aberração num radicalismo vazio de rebelde sem causa. Quem não estuda é um pato da situação, vai ser explorado de todo o jeito, salvo, é claro, honrosas exceções, em casos excepcionais”.
Já no artigo “Pais incompetentes, alunos infratores, reflexos na escola”, o autor lembra que, quando estudante de Direito, fez uma pesquisa com marginais condenados numa casa de detenção e foram raros os casos em que os sentenciados não tivessem problemas cruciais que não fossem de origem familiar. “Em nenhum caso foi um profissional da educação o culpado por uma vida pregressa de má resultante qualquer”, diz. E conclui: “E aí perde todo mundo, a escola e o país, porque o professor não foi feito para dar educação, mas para lecionar com competência a matéria (...)”.
IV
Nascido em Monte Alegre, hoje Telêmaco Borba, no Paraná, mas tendo vivido até a juventude em Itararé, na divisa de São Paulo com aquele Estado, Silas Corrêa Leite venceu alguns concursos com seus romances, artigos, poemas e letras de blues. Foi premiado no Concurso Lygia Fagundes Telles para Professor Escritor, promovido pela Secretaria de Educação do Governo do Estado de São Paulo.
Nos últimos tempos, lançou Favela Stories (Editora Cajuína, 2022) e Vaca Profana (Editora Cajuína, 2023). É autor ainda de Gute-Gute, barriga experimental de repertório (Rio de Janeiro, Editora Autografia, 2015); Goto, a lenda do reino encantado do barqueiro noturno do rio Itararé (Florianópolis, Clube de Autores Editora, 2013); Tibete, de quando você não quiser ser gente (Rio de Janeiro, Editora Jaguatirica, 2017); O Lixeiro e o Presidente (Curitiba, Kotter Editorial, 2019); Ele está no meio de nós (Curitiba, Kotter Editorial, 2018); Transpenumbra do Armagedon (São Paulo, Desconcertos Editora, 2021); Cavalos Selvagens, romance imaginativo (Curitiba/Taubaté: Editora Kotter e Letra Selvagem, 2021); A Coisa: muito além do coração selvagem da vida (Cotia-SP, Editora Cajuína, 2021); e Lampejos (Belo Horizonte, Sangre Editorial, 2019). Publicou também Porta-lapsos, poemas (São Paulo, Editora All-Print, 2005) e O Homem que Virou Cerveja, crônicas (São Paulo, Giz Editorial, 2009).
Consta de mais de cem antologias, inclusive no exterior, como na Antologia Multilingue de Letteratura Contemporanea, de Treton, Itália, e Christmas Anthology, de Ohio/EUA. É autor do primeiro livro interativo da Internet, o e-book O Rinoceronte de Clarice, que virou tema de tese de mestrado na Universidade de Brasília (UnB) e de doutoramento na Universidade Federal de Alagoas (UFAL).
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Vivências Educacionais: de educador para educador, de Silas Corrêa Leite. Cotia-SP: Editora Cajuína, 198 páginas, 2023, R$ 96,00. E-mail da editora: contato@editoracajuina.com.br Site da editora: www.cajuinaeditora.com.br E-mail do autor: poesilas@terra.com.br Site do autor: www.poetasilascorrealeite.com.br
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(*) Adelto Gonçalves, jornalista, é mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-americana e doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Fernando Pessoa: a Voz de Deus (Santos, Editora Unisanta, 1977), Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003; Imprensa Oficial do Estado de São Paulo-Imesp, 2021), Tomás Antônio Gonzaga (Academia Brasileira de Letras/Imesp, 2012), Direito e Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imesp, 2015), Os Vira-latas da Madrugada (Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1981; Taubaté-SP, Letra Selvagem, 2015) e O Reino, a Colônia e o Poder: o governo Lorena na capitania de São Paulo 1788-1797 (Imesp, 2019), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br