Regido pelas canções
RAMALHO, Ricardo. Sonhos & paixões. Crônicas. Brasília: Trampolim, 2020.
Conheci Ricardo Ramalho nos idos anos 80 do século XX, quando de minha militância profissional na Federação das Associações dos Engenheiros Agrônomos do Brasil – FAEAB. Como Vice-presidente pela Região Nordeste, estive em Maceió algumas vezes, em reuniões do conselho, ou em eventos estaduais ou, ainda, quando voltando de reuniões em Recife por conta de negociações para captação de recursos junto ao Governo Federal, cuja passagem pela Sudene era uma exigência. Maceió era uma parada aprazível e oportuna para rever os amigos. Ricardo trabalhava na Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural de Alagoas, morava em uma casa cheia de plantas e mantinha umas leiras onde ele cultivava hortaliças sem veneno para o seu consumo e da família.
Tínhamos perdido o contato até o restabelecimento recente por conta de uma conhecida comum que me permitiu reencontrá-lo e retomarmos nossa amizade, atualizando as conversas e as informações sobre nossas trajetórias de vida. Recebi, como mimo, o livro que ora comento depois de prazerosa leitura.
Desde o prefácio se anuncia uma obra regida por canções que marcaram época, e sempre sob a batuta de uma vanguarda com a qual Ricardo Ramalho se alinha, segue, acompanha, como demonstra a primeira crônica, algumas vezes de maneira confessadamente ingênua. Pior ainda para quem pega carona nas suas ondas, como o vaqueiro analfabeto que recebe como prenda uma carta lida na emissora local de alto-falante, acompanhada de uma canção que ao invés de ser uma cantada à sua pretendente, como solicitara o aboiador, é um lamento pelo amor perdido.
Na segunda crônica, para nos situar na dimensão e extensão do que fora o movimento hippie e dos poderes da língua inglesa no mundo, relata uma serenata reproduzindo músicas dos roqueiros de Woodstock, na cidade de Pombal, de onde é natural, em uma vitrola portátil, nas proximidades de uma pretendida donzela.
A sequência da maioria de vinte crônicas vai se amarrando em canções e causos memoriais que retratam a vida interiorana, em Pombal, município encravado no sertão paraibano, mas também em outros que foram frequentados na trajetória do autor. Três delas vem ao final da coletânea como bônus, e fogem ao estilo de associação com melodias emblemáticas dos tempos de nossa juventude.
O desfilar de crônicas permite seguir, ainda que nem sempre de forma linear, uma cronologia biográfica de Ricardo Ramalho jovem em Pombal, na Paraíba, estudante no Colégio Agrícola nas cercanias de Natal, marinheiro cumprindo o serviço militar, estudante de Engenharia Agronômica em Areias, Professor de Biologia em Alagoa Grande, agrônomo em Alagoas, radicado em um sítio em Maceió. Custa a cortar o cordão umbilical com sua cidade natal e a ela se reporta frequentemente pelas paixões, superficiais ou profundas, que lhe marcam o espírito e seus escritos com saudades e um tom confessional apaixonado e muito franco. Os mais fortes dos cenários são logradouros como o Pombal Ideal Clube, as praças nas festas das padroeiras e as casas dos amigos onde se davam os improvisados eventos de música e dança, pretexto para os namoros e flertes.
As citações de canções inglesas que marcaram a juventude da época só vão ser plenamente compreendidas depois que ele faz um investimento na língua de Shakespeare, e, a meu ver, tem o seu ápice na crônica sobre um grande amor que se desfaz com o casamento da conterrânea com outra pessoa, por conta de seu afastamento físico, trabalhando e morando por muito tempo em outro estado. A inspiração é I never cry, música interpretada por Alice Coper fazendo o contraponto com seu confesso pranto no final do texto.
Ricardo declara na maioria das crônicas o pulular de testosterona que movia a rapaziada para as paqueras nas festas promovidas justamente para favorecer a aproximação dos pares. Faz as descrições das garotas com elegância, sem cair na vulgaridade, e não perde a oportunidade para fazer críticas reconhecendo o machismo que determinava o comportamento da época, embora em pleno processo de questionamentos sobre a discriminação sexual, racial e política.
Bandas inglesas, holandesas, americanas e nacionais, cantores italianos, interpretes e compositores brasileiros em sua maioria preenchem as páginas dessa coletânea memorial. Análise sutil da evolução em curso na expressão da juventude e transformação dos costumes se espelham claramente em Eu te darei amor, texto que relata a mudança da música tradicional da geração anterior para a jovem guarda alienada e alienante. O senso crítico sobre a gravidade dos tempos de chumbo sob o comando dos militares não passa em branco e o posicionamento de Ricardo Ramalho é claro, avesso ao conservadorismo.
Ainda que sem a pretensão aparente de trabalhar academicamente seus relatos, temos nessa obra deste agrônomo militante da alimentação saudável, um bom material para reflexão sobre a antropologia urbana mesclada com aspectos dos ambientes provincianos de nossas cidades e vilas interioranas. Mais ainda, inspira a quem se interessa pela história da música estrangeira e sua recepção em nosso país e como a juventude enfrentou os áridos tempos da repressão dos costumes e da militância política.
Ficam algumas perguntas no ar para que sejam respondidas em edição futura que espero seja breve e aumentada. De onde vem essa ligação tão forte com a música? Qual a referência familiar do autor, uma vez que não há nada sobre seus pais nessa coletânea?
Recomendo a quem tiver acesso à obra um olhar atento sobre esses escritos que nos são ofertados despretensiosamente, mas com uma riqueza que merece análise e diálogos para trocas que possibilitam explorar muitos conteúdos.