O SINTOMA NO ESPELHO: A NEUROSE OBSESSIVA DE RENÉ DESCARTES

Resenha do livro: ULTRA, Matheus. A Vida Sexual de René Descartes. 3ª edição. Disponível em: <https://formasvagas.wordpress.com/downloads/>.

1. René Zero

Recentemente tive o incômodo prazer de ler “A Vida Sexual de René Descartes” de Matheus Ultra. Imagine a minha surpresa ao descobrir que o livro não se tratava do filósofo René Descartes, e que este era apenas o nome do protagonista da história. A Vida Sexual me fez lembrar de um livro que nunca li: Notas no Subsolo de Dostoiévski e O Estrangeiro de Albert Camus - este último eu li. Trata-se de uma novela caleidoscópica - ou deveria chamá-la antologia? Os capítulos do livro não seguem uma linearidade cronológica, embora liguem-se entre si. Não possui início, meio ou fim, dessa forma me arrependi de ter lido os capítulos por sequência numérica. O que posso dizer sobre o livro? Absolutamente nada, essa resenha é inútil e $$@@#&*()))~´g´g–000 vç;;;çvç~, enfim, o livro fala por si mesmo.

A verdade é que o livro tem mais personalidade que seu protagonista, quem é René Descartes? Essa é a pergunta que o livro nos deixa, e que permanecerá para sempre sem resposta. Certa vez ouvi de um amigo que seu pai havia vendido a alma para o diabo, desde então não conseguia mais ver seu reflexo no espelho. Talvez René Descartes seja o pai desse meu amigo, talvez ele seja o meu pai, quem sabe sou eu? O livro descreve René sempre em relação ao Outro, René com Lacan, René com Huckle, René com Irene, René com o doutor Fréderik… René nunca está só, porque quando está, o vazio o aniquila. René Descartes é menos que um protagonista, o protagonista é o Outro. É possível afirmar que essa é a primeira narrativa da história escrita em segunda pessoa. Isso fica claro devido à curiosidade que desenvolvemos sobre os personagens, queremos saber mais sobre Lacan, Huckle, Irene, os pais de René, mas… e de René? Por mais que seja um personagem onipresente, ele permanece amordaçado. A mordaça lhe dá tesão, talvez por isso fosse tão submisso a Lacan e Huckle. Os únicos momentos em que vemos René existir de fato são nas cenas pornográficas de degradação e sadismo, René só consegue existir infligindo dor ao outro… essa, na verdade, é sua forma de vingança.

René está invadido pelo outro, esconde-se na poesia, na filosofia, no sexo fetichista, nas drogas, no casamento, na pornografia, na punheta, esconde-se em seu desejo de não-ser. É claro que René quer se matar! Ele nunca nem sequer existiu. Claro que René quer matar o outro, ele é tudo o que há. A Vida Sexual de René Descartes é um dos melhores livros disponíveis para estudarmos a neuro- acabei de me lembrar que não ainda não falei de sua vida sexual.

2. A vida sexual de quem?

O livro-novela-antologia-caso-clínico-ensaio, ao contrário do que o nome sugere, não é um livro pornográfico, mas um livro pornológico. Temos cenas de sexo e cenas de masturbação, que nos prendem a atenção inclusive, mas a vida sexual de René Descartes está nas entrelinhas, nos espaços em branco das páginas, na sua numeração, na sua capa. O livro tem esse nome porque acompanhamos o desejo de René Descartes, ou melhor: acompanhamos o desejo que René Descartes tem em desejar genuinamente. Isso, claro, porque quem deseja em René é O outro, nosso protagonista. Descartes não goza, ele é gozado, ele não Deseja, mas deseja desejar como os outros. Estamos lendo a vida desejante de René Descartes, essa, verdadeiramente sexual. Não atoa a parte mais pornográfica do livro é quando o pequeno René descreve a vontade que sentia de jogar o mais novo lançamento: Polybius IV. Ele descreve o jogo melhor do que descreve qualquer outro personagem e qualquer outra mulher, mas seu desejo só tem essa magnitude porque era o desejo da pequena Lacan, ele deseja como ela, ele desejava através dela.

Descartes é um homem que se anula o tempo todo, faz questão de não existir, ele fala muito pouco de si, quando fala, deixa aspectos cruciais passarem em branco, ele não se conhece, e tem medo de se conhecer. Uma verdade traumática fala dentro de René Descartes, que só pode ser chamado de -personagem (menos-personagem): quem é René Descartes, o que ele deseja? quem é René Descartes, o que ele deseja? quem é René Descartes, o que ele deseja? quem é René Descartes, o que ele deseja? quem é René Descartes, o que ele deseja? quem é René Descartes, o que ele deseja? quem é René Descartes, o que ele deseja? quem é René Descartes, o que ele deseja? quem é René Descartes, o que ele deseja? quem é René Descartes, o que ele deseja? quem é René Descartes, o que ele deseja? quem é René Descartes, o que ele deseja? quem é René Descartes, o que ele deseja? quem é René Descartes, o que ele deseja? quem é René Descartes, o que ele deseja? quem é René Descartes, o que ele deseja? quem é René Descartes, o que ele deseja? quem é René Descartes, o que ele deseja? quem é René Descartes, o que ele deseja? quem é René Descartes, o que ele deseja? quem é René Descartes, o que ele deseja? quem é René Descartes, o que ele deseja? quem é René Descartes, o que ele deseja? quem é René Descartes, o que ele deseja? quem é René Descartes, o que ele deseja? quem é René Descartes, o que ele deseja? quem é René Descartes, o que ele deseja? quem é René Descartes, o que ele deseja? quem é René Descartes, o que ele deseja? quem é René Descartes, o que ele deseja? quem é René Descartes, o que ele deseja? quem é René Descartes, o que ele deseja? quem é René Descartes, o que ele deseja? quem é René Descartes, o que ele deseja? quem é René Descartes, o que ele deseja? quem é René Descartes, o que ele deseja?

Logo a repetição vira uma memória que é elaborada: Quem sou eu, o que eu desejo? René Descartes é um sintoma no espelho, ele nos coloca diante de nossa própria nulidade, tudo o que há nele é sintoma: a poesia é sintoma, a filosofia é sintoma, a esperança é sintoma, o sadismo é sintoma… e mesmo assim não podemos chamá-lo de doente - nem perto disso. Eu me vi em René Descartes, eu sou ele - e a transferência sexual que claramente tem com sua analista.

Wo es war soll ich werden - vingo-me do autor que preencheu o livro com trechos em inglês, francês e latim e coloco um pouco de alemão. Nem mesmo Clara Marx tinha respostas para as perguntas que René se fazia. Como superar a nulidade, como habitar esse lugar que é dominado pelo outro? Como habitar o próprio desejo?