Resenha "Mitologias jurídicas da modernidade."
Disciplina: Teoria política.
As ideias que povoaram o imaginário popular na transição do mundo moderno é o tema principal do jurista italiano Paolo Grossi na obra “Mitologias jurídicas na modernidade”, na qual o autor trabalha na desmitificação de ideais modernos tidos como pétreos pelo senso comum e acadêmico. Paolo tem uma especial preocupação em mostrar ao leitor a complexidade do direito, que foi simplificado brutalmente pela modernidade, destrinchando suas nuances no decorrer da história e a amputação feita pelos modernos. Nesse âmbito, a resenha que escrevo tem como telos a análise, crítica e a compreensão da visão dele a partir de uma ótica contemporânea.
Paolo Grossi começa sua obra a partir de uma pequena introdução, na qual define três pontos: (a) propósito de seu livro e do historiador do direito, (b) o método usado pelos mesmos e o (c) funcionamento da obra.
Propósito. Para começar, qual o objetivo do historiador do direito – e, consequente, da presente obra analisada –? Na visão do autor e deste que vos escreve, é: relativizar, desmistificar, chamar a atenção; um atiçador. Um indivíduo que não se rendeu as certezas que o iluminismo impôs, mas está atento as diferentes culturas e lógicas; está atento nos “custos culturais do simplismo." Ou seja, ele deve quebrar tais convicções predominantes durante muito tempo no contexto universitário europeu continental que, contudo, se mostraram com o tempo totalmente erradas. Método. A arma apresentada aqui é a da comparação; primeiro nós compreendemos o objeto historiográfico e logo após comparamos. E funcionamento. A obra é dividia em quatro discursos, cujos focos são, obviamente, a comparação de diversos objetos historiográficos e a presente realidade, apresentando diversas semelhanças, dissonâncias e, principalmente, críticas. Iniciemos, portanto, o primeiro desses.
Primeiramente, a obra começa com uma pergunta provocativa típica do historiador do direito: justiça como lei ou lei como justiça? Em primeira análise, para antes exercer juízo de valor, precisamos entender os significados dos termos usados. O que é lei? Para os modernos e para sociedade atual, leis são imperativos inflexíveis, impessoais e que não consideram as situações particulares, como uma máquina que não pensa nem vê: uma ordem autoritária sem direito a resposta. E justiça? Bom, poderíamos ficar páginas e páginas discutindo as mais variadas visões, mas visando o foco no texto de Paolo, irei classificar justiça como: o bem comum das comunidades. Assim, não se pode negar que há uma clara distinção entre os dois – é claro: a lei almeja a justiça e, de certa forma, tenta-se alcançar a justiça pelas leis. Contudo também não se pode negar que essa ideia tem falhado constantemente, e também por isso não podemos julgar o sendo comum e acadêmico que desconfiam fortemente do direito –.
Nesse aspecto, ressalto aqui novamente o ilustríssimo papel do historiador do direito, pois esse é capaz de abrir os olhos fechados dos juristas para as mais diversas manifestações do direito e da justiça; visto que esses excedem os ordenamentos e as leis. No medievo, por exemplo, São Tomás de Aquino escreve um texto discutindo sobre a tirania, afirmando que se o soberano não segue a Lei Natural – justiça –, seus súditos têm o direito de lhe depor ao falar com seus superiores. Coisa que não acontece no mundo iluminista, no qual o soberano tem total direito sob seus submissos, um claro retrocesso.
Assim, Paolo Grossi continua sua obra caminhando para o direito medieval, suas manifestações, objetivos e avanços. Infelizmente, o medievo foi taxado de diversas mentiras durantes os séculos passados: “idade das trevas”, classificar algo como “medieval” é falar que é retrógado e disfuncional, etc. Percebe-se, contudo, que tais afirmações não se baseiam na verdade, tendo um conteúdo puramente político; pois a era medieval é, na realidade, marcada por grande complexidade, sofisticações jurídicas, sociais e políticas. Nesse sentido, uma das características mais relevantes para o estudo do direito é a incompletude do poder – cuja definição não é a falta de poder, mas o objeto do mesmo –, isto é: o direito não tinha como foco legislar sobre todo tecido social. Nesse aspecto, permitiu que essa – a sociedade – fosse livre para externalizar as mais diferentes manifestações culturais, políticas e religiosas em toda Europa. Para completude do conceito, também vale ressaltar a ideia que se tinha sobre a lex (lei), conceito esse desenvolvido por São Tomás de Aquino que afirma: “um ordenamento da razão voltado ao bem comum, proclamado por aquele que possui o governo de uma comunidade”. Ou seja, não estamos tratando de um projeto de poder político, mas de uma leitura da realidade, algo aristotélico: que se baseia no dia a dia da comunidade local, nunca se abstraindo muito, dialogando sobremaneira com os indivíduos. Finalizando a citação de São Tomás, falemos sobre a razoabilidade da lei. A lex é totalmente dependente da razão aqui, por mais que tenham nos dito o contrário, percebe-se que sem razão não há lex. O filósofo leva tão a sério esse conceito que escreve um tratado falando que se o Príncipe não faz leis de acordo com as fontes legítimas – Lei Natural, Lei Divina, Leis dos Homens – cabe ao povo rejeitá-lo.
A modernidade, porém, foi totalmente na contramão do que foi falado até aqui. Enquanto uma se configura complexo, factual e respeitando o pluralismo jurídico, outra se configura simplista, abstrata e monista. Os fatos que justificam esses processos são diversos, mas percebe-se principalmente uma repulsa ao medievo em geral, nesse sentido, vale ressaltar que ela – a modernidade – tentava liberdade o indivíduo de tudo o que tinha vindo antes, é claro que a transição das é lenta e gradual, não apresentando, em primeira análise, grandes rupturas; contudo, pequenas ideias vão se alterando e, tijolo por tijolo, a modernidade se constrói.
A sua construção, para o intuito que vos escrevo, se fundamenta em dois alicerces: (a) união de política com direito e (b) a substituição da lex pela loy. União. Em primeira análise, é evidente que os dois conceitos já haviam conversado antes, na Roma antiga o direito estava muito ligado ao Senado. Contudo, aqui a união tem mais a ver com usurpação: nesse momento o direito – que começa a se confundir com lei – começa a ser uma simples ferramenta nas mãos do soberano. Não está mais ligado a razão que os medievais tanto requeriam, a lei fundamentada em Deus, na natureza e nos homens é substituída por um conceito geral e abstrato. Nessa seara, o filósofo Jean Bodin foi um dos primeiros pensadores desse âmbito, sendo ele o idealizador da soberania nacional moderna – ele ainda não falava do monismo jurídico, pois lembre-se que foi um processo gradual de transformação do pensamento –, o que, aos poucos, deu para o Príncipe o papel de legislador – o Estado como fonte única do direito –.
O segundo fundamento é o da loy, e nesse âmbito, há uma enorme diferença entre lex e ela. Nesse sentido, a lex de Tomas de Aquino transforma-se na loy francesa, isto é: a vontade do soberano; esse é o arquétipo do Príncipe encarnado pelo político italiano Nicolau Maquiavel, cuja obra principal define justamente o príncipe, que deveria agora ser mais temido que amado. A lex, que era cheia de conteúdo e razoabilidade, é substituída por uma loy arbitrária que se baseia-se unicamente na boa vontade de outrem.
Nesse sentido, não podemos negar a ligação entre o surgimento dos Estados modernos e tais estruturas jurídicas, na realidade, vê-se claramente que o ordenamento se tornou o que é justamente por causa dessas novas estruturas de poder. Como já foi falado, o direito tornou-se marionete dos soberanos, esses que agora não tinham nem ao menos direito de resposta; o que, ao olhar de um jurista em formação, se configura como um projeto de poder político de uma pequena minoria. É claro que podemos e devemos aprender com as experiencias desse período: elas são valiosíssimas em tudo o que são; contudo, não podemos deixar de criticar. Seguindo nessa perspectiva, tal projeto de poder começou a se transformar quase que uma religião: os antigos dogmas católicos já não suportavam mais os caprichos modernos, portanto fizeram um outro culto para outra divindade: a lei. Agora a lei é suprema, nunca erra e deve ser adorada por todos. Nesse sentido, lembro-me de um templo que existe para cultuar a “Ciência” em Porto Alegre, que surgiu do iluminismo deste período. Vemos aí, portanto, uma das maiores mitologias modernas, pelo visto abandonar as abadias e ir para as cidades não resolveu muita coisa.
Não posso negar que é nesses momentos que, como jurista em formação, percebo a necessidade de haver o exercício do livre pensamento. Nesse sentido, a formação das universidades em plena idade média – em 1080, para ser mais específico, em Bolonha – nos mostra o quanto um ambiente salvaguardado para a faculdade do pensamento pode transformar totalmente uma sociedade regida por dogmas específicos. Prosseguindo, o autor menciona Montaigne, um pensador que critica fortemente o monismo jurídico moderno; nesse ponto concordo com o jurista. É pacífico dizer que a era moderna foi marcada por exageros, sendo um desses o monismo; desrespeitando a ordem das comunidades e a antiga ordem.
E no que tange essa transição de eras, é evidente que a modernidade rompe com o medievo, entretanto, a história não é feita de eventos isolados e mudanças repentinas, mas de processos lentos, graduais e constantes. E, no meio desse caos de ideias e espadas em uma França extremamente turbulenta, surge um dos principais pensadores da modernidade: Jean Bodin, o idealizador da Soberania. Jean definiu essa como a autoridade suprema que não se submete a ninguém, salvo Deus e os contratos internos – o que lhe diferencia de Hobbes, por exemplo, não podendo ser colocado como um teórico absolutista –; seu foco está, na realidade, na centralização do poder, Bodin vê uma França – palco principal de toda modernidade, aliás – destruída por guerras religiosas inexoráveis e crê que a única solução para parar os massacres é colocar em uma instituição, ou pessoa, o poder supremo; a soberania.
Assim, nesse processo de centralização de poder, vai-se aos poucos surgindo a noção que o príncipe é também legislador: daí o príncipe-legislador, homem esse que não é mais submisso as leis divinas ou humanas, pois é seu dever criar novas leis. Podemos ver, claramente, o processo de transição da lex pela loy, já explicado anteriormente, na prática; porque é deste modo que se começa a esvaziar o conteúdo da lei, dando-lhe caráter personalíssimo do próprio governante, o que a afasta da sociedade. Na realidade, o grau de fissão entre a esfera social e jurídica é tão grande que se mudou até mesmo a nomenclatura: social – esfera da Sociedade – e jurídico – esfera da Lei–.
Esfera da Sociedade. O conteúdo do que hoje chamamos de “código civil” não era regulamentado pelo recém-nascido Estado, ou seja, esse era tutelado pelas comunidades locais e suas tradições; não sendo, portanto, estáticos, mas móveis e fluídos. Nesse sentido, essa esfera também é chamada de direito; está enraizada nas sociedades e nada pode lhes controlar propriamente dito. Esfera da Lei. Essa esfera ao contrário, é paralisada e cheia de burocracias; o que, obviamente, não consegue acompanhar uma sociedade dinâmica como aquela. Nesse paradoxo surge um dos maiores desafios da era moderna: a absorção do direito pela lei; esse é o desafio, por exemplo, do código Napoleônico, que foi símbolo dessa época.
Obviamente, esse modus operandi – por mais que funcione na prática – não é funcional, isto é: com o passar do tempo fica insustentável. O que ocorreu foi que após a segunda guerra mundial, uma nova onda de juristas surge em todo o globo – principalmente na Europa –revogando vários equívocos cometidos no passado. Grossi cita Georges Ripert que argumenta: “quando o poder político se manifesta em leis que não são mais a expressão do direito, a sociedade encontra-se em perigo”. Quer dizer, são nesses momentos que, novamente, percebemos a importância do historiador do direito no mundo moderno, pois é que nos fez olhar para o passado em renúncia aquilo antes dito e praticado.
E ao fazê-lo, o Historiador do Direito também se projeta para o futuro: pois apesar dos vários intempéries colocados na visão do jurista contemporâneo, não hesita em questionar os dogmas – pois mitologias transfiguram a história, e uma história transfigurada é somente uma simples propaganda – estabelecidos pela modernidade – dogmas esses que se configuram como um sistema de verdades impostas de tal maneira que, vale ressaltar, se parecem mais com uma religião (aquela que tanto repudiam) do que qualquer outra coisa–. Nesse âmbito, pode-se verificar que essa propaganda, ao afirmar que superou o medievo, baseia-se em dois pilares: secularização e cientificismo.
Secularizar-se, no sentido político-jurídico, significa separar a esfera da religião da do direito e, ou, política; enquanto cientificismo significa a maior valorização da ciência e seu consequente avanço. Contudo, afirmar que a Igreja não influencia mais a política diretamente e que os avanços científicos notáveis significam deixar as mitologias de lado não passa de sofismas baratos. A ruptura dos Estados Modernos, ao contrário do que se imagina, com o medieval foi política e filosófica, ou seja, o desgosto pela Igreja combinados com uma vontade imparável de ocupar seu lugar de influência, levaram a necessidade da criação de novas bases filosóficas para justificar seu domínio – como já haviam abandonado as sólidas bases metafísicas antigas –; daí surge, portanto, a mais nova e moderna fábrica de mitologias: o jusnaturalismo.
O jusnaturalismo, mais conhecido como o iluminismo político-jurídico da Europa continental, foi uma ideologia que perdurou e ainda perdura sobre a sociedade, criando visões de mundo indiscutíveis, ideias como estado de natureza, contrato, representação política, igualdade e vontade geral, por exemplo, surgiram nesse meio. Todos eles, apesar de serem tidos como indiscutíveis, percebe-se que essas bases, no fim das contas, são frágeis e necessitam de uma meta-realidade ou meta-história absoluta para se sustentar – ou seja, uma forma própria de interpretar a realidade–; sendo mais crença que conhecimento, e isso porque precisa sê-lo.
As consequências que Grossi cita sobre desse direito – um direito resumido a normas: uma expressão de comando vinculado ao Soberano, que, vale ressaltar, é totalmente diferente daquele medieval fundido à sociedade – são perceptíveis: a organicidade torna-se artificialidade, a criação, interpretação e aplicação não conversam mais e, ao ignorar a realidade social na qual é aplicada, é autoritário e distante da sociedade. A relação Estado-direito, de acordo com o autor da obra e daquele vos escreve, revela um empobrecimento do saber jurídico, pois o direito antes de ser potestativo é ordenamento: um conjunto de experiências humanas, uma parte ativa e fluída da vida social. Como um estudante de direito, novamente, não posso discordar do autor quando afirma que deve haver uma recuperação dessa complexidade perdida pelo monismo Estatal; uma nova valorização daquilo que foi perdido a séculos atrás. Tal ideia surge, principalmente, no contratualista Thomas Hobbes, que em seu livro Leviatã descreve o Estado, isto é, o Soberano, como acima das leis, podendo usar de toda força para aplicação das leis que ele mesmo faz. Concordo com o autor que é preciso a nova forma de governo; uma que seja composta de seres humanos que pensem e questionem suas ações.
Nessa seara, Hans Kelsen é, apesar de ser querido por Paolo, criticado pelo conteúdo de suas obras; pois defende o formalismo e o normativismo. A argumentação do autor baseia-se no entendimento que cristalizar um molde em uma sociedade em movimento pode não somente lhe paralisar, mas também a machucar e punir seus futuros desenvolvimentos. Nesse momento, concordo em partes com Grossi, porque não vejo a sociedade como totalmente autônoma nos seus juízos sobre todas as coisas. Se o direito é totalmente adaptável a opinião da sociedade, e se a sociedade afirmar algo absurdo – como, por exemplo, anular a tipicidade do homicídio –, então o direito deveria acatar o absurdo? Mas Grossi continua e afirma que a solução para esse problema seja encarar o direito como ordenamento.
Ordenamento. É ordenar, prestar constas contas com a realidade subjacente, é organizá-la, é colocar o direito novamente do lugar em que foi tirado. Essa seria, segundo o autor, a maneira pelo qual recuperaríamos a complexidade e abandonaríamos aquele iluminismo reducionista que, apesar de ser visto comumente como um avanço da humanidade, para o mundo do direito simplesmente leva a abstração e, consequentemente, a redução e artificialidade. Reduz pois não consegue ver todas as comunidades dentro da sociedade e artificializa, pois, cria uma sociedade imaginária totalmente coletivizada.
Para completar o raciocínio, cita o ilustríssimo São Tomas de Aquino, que afirma: esse unum secundum ordinem, non est esse unum simpliciter – a realidade ordenada não é uma realidade simples –. Quer dizer, a intervenção iluminista na ordem humana – separar norma da realidade (o que, obviamente, leva a morte por asfixia) e crer no mito do poder Soberano perfeito –, por mais que pareça muito ordenada e simples, não o é, pelo contrário: é o próprio caos encarnado. Assim, termino concordando com Grossi nesse ponto: precisamos urgentemente recuperar a visão de direito como ordenamento.
As mitologias jurídicas modernas, contudo, ainda são evidentes em nossa sociedade. O código civil italiano de 42’, por exemplo, é espécime mor de tudo o que já foi discutido e criticado até aqui. Contudo, para melhor compreensão do que será falado, definirei o que é hermenêutica, pois esse conceito é base para tudo o que será discutido posteriormente. Hermenêutica é interpretação de algo, trazer aquilo que está escrito à realidade na qual o texto é requisitado e, no sentido jurídico, interpretar as leis. O código de 42’, entretanto, não vê a interpretação como um instrumento do jurista, pois crê que ela deve limitar-se a entender o que o legislador desejava com a criação daquela lei; o que, evidentemente, causa uma ruptura entre norma e sociedade.
Para contrapor essa visão, Grossi cita o autor italiano Mario Libertini, que aponta para a norma como ideal de regulamentação, reconciliando Estado e população a partir de uma visão ética. Assim, para que essa reconciliação aconteça será necessária uma nova hermenêutica, essa que agora deve levar em conta tudo ao seu redor, acolher as paisagens jurídicas que lhe são propostas, olhar também para os sujeitos, isto é: os destinatários do comando. A interpretação não pode ficar sempre cristalizada, precisa ir se adaptando as circunstâncias, somente dessa forma, segundo o autor, o homem do povo também pode se reconciliar com o Estado e o direito. Agora segundo aquele que vos escreve, creio particularmente que a visão de Paolo só faz sentido quando o Estado e a população acham um equilíbrio de poder, nunca um sobrepondo o outro.
O autor agora faz um pequeno exercício mental: se direito é lei, e se lei é a vontade expressa do Soberano, então o direito, agora entronizado em um código, é marionete do mesmo. Primeiro, já vimos que direito, na realidade é ordenamento não é o código em si. Segundo o que seria lei? Lei, de acordo com os modernos, não é o que é pelo seu conteúdo, mas pela sua origem. Dessa forma, o legislador pode colocar o que quiser dentro dela, cristalizando sua vontade em um imperativo que deveria ser obedecido em todas os contextos. Contudo, esse direito, como já falei anteriormente, não nada funcional e, portanto, é fadado a decadência. Vive-se hoje na era da informação, essa que é muito complexa e mutável. É inevitável que o direito fixo morra em uma sociedade imparável como a nossa. O legislador nunca foi a única fonte do direito e o direito nunca foi somente as leis e os códigos; e as consequências de adotar um sistema tão injusto são vistas até hoje.
A primeira causa desse complexo sistema de normativismo jurídico, aponta Grossi, é o código. Códigos são palavras polissêmicas e devem ser tratadas com muito cuidado, pois podem ser facilmente confundidas com significados muito antigos ou muito modernos. Assim, a preocupação do autor em alertar os historiadores para abandonar esse léxico simplificador e adentrar nos anais da história é justificável e honrosa. Nesse ínterim, a inserção do código napoleônico – vale ressaltar que o contexto vivido aqui é aquele típico iluminismo francês revolucionário – foi um rompimento com o Antigo Regime, mas não total. Os legisladores revolucionaram, por ironia do destino, foram educados na antiga lógica e, dessa forma, vários aspectos antigos são mantidos: os códigos italianos e germânicos são exemplos disso.
O código Imperial Germânico é apresentando como uma ilha em meio ao mar revolto de autoritarismo: clausulas abertas e adaptável aos casos permeiam todo aquela norma. A Itália também vai recuperando a complexidade aos poucos, pois é inadmissível existir leis que proíbem os ricos de mendigar assim como os pobres. O código torna-se incomunicável e, como resultado de uma monopolização da produção jurídica por parte do poder político, é o instrumento de um Estado monoclasse. O Direito fica preso na produção, como já falei na parte da hermenêutica, é, portanto, instrumento de um Estado.
Sendo assim, houve de fato uma ruptura, sendo essa, na opinião do autor e na minha também, a mais drástica mudança: a intervenção do Estado na vida civil. Percebe-se que, mesmo nos anos mais autoritários de Luís XIV, nunca lhe passou na cabeça fazer algo do tipo. Era seara intocada até então. Mas nada pode escapar das mãos desse novo Estado monoclassista, pois a Droit – que são os costumes – é substituta por loy – a lei encarnada no Soberano –, como já afirmava Jean bodin. O Príncipe agora é idealizado como o novo homem moderno, a lei, que é vista como uma extensão do mesmo, também é. Nada pode ser tão místico quanto isso. A causa apontada no texto é perda de influência de outras instituições, principalmente a Igreja.
Nesse momento abro parênteses, pois não posso deixar de concordar com Paolo no que tange a isso: a Igreja, ao perder sua influência, deixou que um Leviatã surgisse no meio do povo. A modernidade tem muito a nos ensinar sobre soberania e poder, é claro, contudo, os abusos cometidos e teorizados poderiam ser facilmente amenizados caso houvesse uma imposição maior tanto das Igrejas protestantes, quanto da Católica, pois é ela que pode balancear o jogo de poder não cedendo aos caprichos do Estado e impondo limites a sua influência.
Tendo em vista tudo o que já discutido e exposto até aqui, de acordo com o autor, não podemos negar a importância, novamente, do historiador do direito. A repetitividade do assunto demonstra sua importância, como já dizia Chersteton: “não podemos fazer grandes coisas olhando para o futuro, somente para o passado”. E o historiador é a encarnação disso, ele não consegue, talvez, propor grandes mudanças para os próximos 50 anos, mas com certeza pode criticar e relativizar o que os juristas têm como certo e indiscutíveis. É certo que a discussão sobre a existência ou não dos códigos está em alta: vive-se em um mundo dinâmico, complexo e globalizado; como conciliar isso com um código estático? Assim como Grossi, não procuro dar aqui uma solução, somente atiçar e provocar futuras respostas. É óbvio que uma sociedade que ignora todo tipo de norma é fadada ao fracasso e a guerra, como bem apontou Hobbes, mas também é fadada ao fracasso aquela comunidade que interpreta direito como lei e lei como vontade do soberano, portanto como prosseguir? Bom, creio que nem todas as perguntas têm respostas, mas particularmente creio que é necessário a presença de um código fixo e estático, conquanto ele não atrapalhe a livre iniciativa dos indivíduos em suas esferas individuas.
Para finalizar sua obra, o autor dá uma breve explicação sobre a Carta de Nice e, para isso fundamenta sua argumentação no jacobinismo jurídico. Para compreender o termo e a problemática apresentada, Grossi inicia comentando sobre o jurista, ser este que busca inerentemente ordem. Não uma ordem cósmica acima das estrelas, mas uma ordem de elemento social, essa envolvida por uma dinâmica contínua. Contudo, ao apegar-se demasiadamente em resultados históricos específicos, se esquece que são relativos aquela situação naquele lugar, o que resulta no maior problema do jurista moderno: a absolutização de tudo. Por isso, ressalta Paolo, é imprescindível que historiador do direito dialogue com os juristas contemporâneos, pois eles, como já cito anteriormente, são relativizadores por natureza, podendo abrir os olhos dos demais para realidades ainda nem mesmo pensadas.
Agora voltando ao tópico, a revolução francesa de 1789, que ainda é continuamente comemorada em toda Europa é símbolo desse jacobinismo revolucionário. Pois não aceita dúvidas em relação a revolução e, principalmente, fortalece a ideia de um Estado centralizador que detém o controle do direito. Reduzindo, assim, a complexidade dos fenômenos jurídicos e intensificando o próprio iluminismo. A meu ver, creio que houve uma grande mudança, entretanto, não são suficientes; normas sufocantes e um Estado onipresente continuam tendo seu espaço. Exemplo disso é a enorme constituição brasileira, sendo considerada uma das mais complexas e grandes no mundo e por mais que na teoria sejamos uma federação democrática, percebe-se a falta de autonomia das comunidades dentro da sociedade para a resolução de seus conflitos.
Em síntese, o pensamento de Grossi é uma reação a modernidade, essa totalmente diferente do medievo. Sua análise propõe uma reflexão histórica não somente sobre o direito, mas de todas as meta-realidades já aceitas no fluxo da história. A questão aqui é sobre a idealização do indivíduo e da norma, separando o direito da sociedade, isolando-o do homem comum. Para resolução deste problema, Paolo Grossi afirma que o direito não deve ser visto como lei, mas como ordenamento, adaptando-se as realidades vividas por cada pessoa que utiliza o saber jurídico.
E Para terminar as minhas palavras, concluo, a partir de tudo o que o autor dissecou naquelas páginas, que tal obra é importantíssima para qualquer estudante de direito deste país. Em um país de raízes totalitárias e instável, é necessário a criação de uma nova classe de operadores do direito que irão mudar o direito brasileiro para melhor.