Meridiano de Sangue: A sangrenta realidade da conquista do Oeste
Kid é um menino de 14 anos quando foge de casa e vaga pelo mundo basicamente arranjando problemas e sobrevivendo. Entre essas, ele vê pela primeira vez o juiz em um evento religioso. Depois, vai continuar a vagar pelo mundo solitário e em extrema necessidade e já sem nenhum rumo quase morto é quando recebe uma chance de compor um grupo de nacionalistas que acreditam na causa anti México e indígena. O grupo do capitão White. Porém na primeira viagem, além do sufoco, eles são dizimados pelos índios e apenas Kid e mais um sobrevivem. E tentam resistir. Eles são capturados por mexicanos e então encontrados por Glanton e pelo juiz. A partir dali, ele conhece a verdadeira crueldade e primitivismo ancestral que serão algo muito importante para contar essa história.
O texto é escrito de forma gráfica, temos toda a violência encarnada pelas mãos desses homens e temos o cenário descrito de uma forma exuberante e desoladora, sentimos o cansaço de seus personagens. Esse livro poderia ser tranquilamente uma grande série que nos levasse a alguma obra no estilo de fotografia de filmes como os de Sergio Leone ou da Série True Detective e ainda nos moldes de Chabouté e sua visão gráfica.
Os homens e suas ações nos fazem imaginar degradação e as mortes, são tão gráficas as cenas que contém os crimes e ausência de leis que nem sei que frase usar sem deixar de lado em diversos momentos lembranças difíceis ao ler, pois, Cormac Mc Carty não nos poupa.
A distinção de Mc Carty está na detalhação e crueza que impõe, ele entrega ao leitor tudo o que se é para entregar sem nenhum rodeio, desde que o livro começa e os personagens vão surgindo, nós sabemos qual será o seu fim. Não importa o quanto queiramos que kid ou o garoto no cavalo do juiz vivam, nós sabemos que vão morrer.
A leitura por vezes fica monótona ou parece repetitiva, em algum lugar escrevi que achava que isso era o propósito. Ele nos queria ver em um calvário sem fim de uma terra difícil com seres ainda mais difíceis. Que desejam ir para lugar nenhum e que esperam nada e caminhar pelo limbo ou calvário seria o seu único objetivo, como estar vivo e atravessar os dias apenas por que se está nesse mundo. Não há no fim um objetivo de nenhum personagem e nem uma vida pregressa que importe, eles repetem os seus caminhos. Kid é a exceção por querer quebrar isso, porém a sua culpa é a sua vida presente e, esse presente nunca atingirá futuro pois aquele lugar não permitirá. E para mim, toda a caminhada e longas descrições servem para aumentar essa sensação de nada a se ter ou ver de esperançoso para os personagens.
Uma criação de obra nesse tom deve ser terrível de calcular, o livro inteiro é uma viajem sem destino e que ao mesmo tempo, traz uma enigmática mensagem de desesperança e de que o progresso por mais que o estejamos vivendo em um tempo pareça enorme, ele nada mais é que uma prestidigitação, um truque para nos manter em um rumo já decidido e que apenas o indivíduo pode mudar (em alguns casos que dependem da sorte) e não se sabe se poderá gozar dessa mudança como vantagem ou como maldição, a escolha por não fazer parte de uma rota da civilização nos isola e creio que na visão do autor (sua mensagem), é impossível trilhar de forma boa ao menos que tenhamos algum conhecimento "místico" ou "infernal", o Juiz conhece, a questão será de nos mantermos superiores ou de dividirmos tal chama. O autor então usa esse personagem para nos enganar também, porém sem mentiras e sim com o texto: Não é a guerra que é o maior dos deuses, e sim os ciclos.
Quando uma guerra determina um novo tempo, tudo estará novamente como em um relógio, é preciso girar pelas horas, porém os ponteiros devem se encontrar novamente 24 horas depois e assim mais uma alvorada. Quando chegar o fim e o crepúsculo desta alvorada, é a hora da guerra para que se mantenha o giro, se o giro destoar de sua natureza e for em reta, logo o tempo perderá o valor, não se retornará para reconstruções e assim a evolução do mundo não será necessária. E para o juiz isso não é bom pois ele perde a sua utilidade.
O livro todo está baseado também em previsões. Algumas cenas como a do baralho de tarô e antes do coração negro são presságios de coisas que ocorrerão. E há certamente vezes que devo ter deixado passar, porém como dito, esse é também um truque do autor, entregando misticismo em meio a dureza do que vemos, para confirmar, o que o juiz faz na fogueira com a moeda, onde fala algo importante ao enredo más deixamos passar pois prestamos atenção ‘apenas na moeda’ e isso é espetacular pois esse livro possui metalinguagem e o interessante é que muitos bons leitores não percebem este truque (eu sou um que teve que reler para pegar).
Não digo que todo o livro me agrada. Por vezes é cansativo ler mesmo sabendo que é de propósito e também há algumas passagens muito exageradas dentro do texto e aqui cito duas: O jantar no palácio do governador e Quando Brown engana o guarda e se dá de uma forma infantil o restante do ocorrido.
Outra coisa que me deixa também no mesmo modo, é de como os personagens se reencontram em algumas passagens. Em um lugar ermo e onde tudo deve ser longe demais como está descrito, acho que os cruzamentos entre estes é simplório de desenvolvimento e se entrega como destino, o que me parece um Ex machina.
Esse livro também é sobre a violência primal, sobre a lei do mais forte e do mais resiliente. É um romance histórico e uma retratação avessa da imagem de um Oeste romântico que tanto foi descrito no cinema, e que quebra a visão americana comum passada durante décadas da conquista do seu território, não foi com heroísmo e muito menos sem sangue e não foi algo que se diferencia de outras conquistas através dos tempos. Más é preciso dizer que a obra não pretende ser uma revisão histórica.
Para terminar, achei o livro incrível e realmente vale demais a leitura. Esse juiz é algo impressionante por sua simbologia e pelo caráter de sua onisciência. Ele mesmo parece ser sabedor de que está alguém a observar e ler a sua fábula. Por uns momentos, e até agora estou em dúvida se, o idiota que é encoleirado pelo juiz após ser banhado e ter renascido não é o próprio leitor, querendo entender aquela criatura e sendo usado e tratado como prisioneiro cativo, seguindo um caminho que lhe foi doutrinado, sem perceber e dar luz ao seu próprio propósito. podemos tentar interpretar o juiz e kid como participantes de uma enorme metáfora para a história do homem e nossa evolução. uma dica para tal interpretação está no epílogo onde através de uma metáfora temos uma visão de ciclo, de destruição e recomeço.
Curiosidades:
▪ O livro foi escrito por Mc Carty a partir de uma biografia de um homem chamado Samuel Chamberlain, (My confessions). Nesse livro ele escreve que participou de uma gangue que trabalhava para governantes e políticos exatamente coletando escalpos e sendo pago para isso. O homem que comandava o seu grupo era um ex – capitão chamado John Joel Glanton e que era auxiliado pelo juiz Holden, porém não se sabe detalhes do tal juiz. O próprio Chamberlain foi base para o Kid.
▪ O tempo histórico retratado está no período da guerra mexicana – americana, (1846/48), tal guerra foi ocasionada pelo dito “destino manifesto” que os americanos criam possuir. Tal diz que “Os americanos tinham o dever de civilizar os povos” 1872
Edição que li:
Meridiano de Sangue Ou o rubor crepuscular no Oeste
Autor: Cormac Mc Carty
Editora: Alfaguara (1° edição 2009)
Tradução: Cássio de Arantes Leite.
ISBN 8560281932