Alguns humanos - Gustavo Pacheco
Macacos me mordam: que livro fabuloso!
Gustavo Pacheco - Alguns humanos, Rio de Janeiro, Tinta da China, 2018
Macacos, orangotangos, chimpanzés, formigas, axolotes, africanos, pigmeus, botocudos, príncipes, escritores, amantes e muito mais. Tudo junto e misturado: história e ficção, ciência e xamanismo, bizarrice, humor negro, delírios... Tem de tudo um pouco no belo livro de contos de Gustavo Pacheco, vencedor na categoria (Prêmio Clarice Lispector) do Prêmio Literário Biblioteca Nacional 2018. A seguir, um resumo das onze histórias de Alguns Humanos:
Dohong: é um filhote de orangotango enjaulado num zoológico em Nova York no início do século passado. Ele ficou doente após a morte da mãe, de desgosto ou tristeza, algo assim. Recupera-se aos poucos e assiste à chegada de Ota, um novo primata em exibição. Ota é, na verdade, um pigmeu, que passa a atrair inúmeros visitantes ao lugar, fica famoso. Certo dia aparecem uns religiosos, pastores evangélicos, que querem falar com o diretor do zoológico, na verdade impedir a exibição do pigmeu. Ele é uma criatura de Deus: não pode ser exibido como um animal, dizem. A história avança e as coisas se complicam...
Alguns Primatas: mais do que sobre os muriquis, os maiores macacos das Américas, o segundo conto é mesmo sobre uma conversa entre escritores, um homem e uma mulher, que no passado já se amaram e hoje estão separados, ela com outro, ele sozinho. Como os muriquis entram na história? Através de outra história que está dentro desta, que também envolve três pessoas: uma jovem pesquisadora, seu namorado, também biólogo, e um pesquisador alemão que dirige o projeto: eles estudam justamente os hábitos dos muriquis numa reserva ecológica brasileira. Então, certo dia...
Zakaly: o pequeno Zakaly foi capturado juntamente com outros africanos e viaja num navio negreiro em direção ao Brasil. O menino tem um grande medo: ouviu dizer que eles serão devorados pelos brancos. Porém, fato raro, os escravos se rebelam, tomam a embarcação e acabam encalhados numa praia. Depois de muito andar pela mata os fugitivos são capturados: a maioria vai enfrentar trabalho duro nas plantações. Zakaly, por sorte, vai morar na senzala e ajudar na cozinha de uma casa-grande em Salvador. Seus temores se dissipam: ele nunca viu tanta comida gostosa em sua vida, nunca comeu tão bem. Aí, no último parágrafo, acontece algo...
História Natural: conta uma história que parece tão real quanto uma reportagem de jornal ou revista. Da qual participa, em citação, até mesmo Holden Caulfield, o inesquecível personagem de O Apanhador no Campo de Centeio, para equilibrar melhor realidade e ficção. A questão: se os ditos povos primitivos podem ser representados como criaturas exóticas num museu (o de História Natural de Nova York, visitado pelo personagem de J. D. Salinger), não seria o caso de a instituição se mostrar politicamente correta e passar a exibir painéis (dioramas) sobre a vida cotidiana de franceses, alemães, americanos, especialmente estes? Um especialista é chamado pelas autoridades para levar a tarefa a cabo e aí...
Kuek: em 2011 uma cidadezinha mineira solicita à Alemanha a devolução dos restos mortais de um índio botocudo originário da região do Jequitinhonha. Seu nome: Kuek, falecido em 1834 em Neuwid. Em 1816 fora adquirido pelo príncipe Maximiliano de Wied-Neuwied: era então um escravo. Grande caçador, ao mesmo tempo o nobre alemão era um sábio apaixonado pela natureza. Dedicou a vida inteira à caça e à ciência, nunca se casou nem teve filhos. Na corte de Neuwid o jovem Kuek assume o nome cristão de Joachim Kuek e se torna criado pessoal do príncipe. E pensar que os botocudos eram pagãos, belicosos e com fama de antropófagos... Mas afinal, Kuek cometeu suicídio por saudade da vida selvagem ou morreu de uma inflamação no fígado de tanto beber?
O Amante da Mulher Mais Feia do Mundo: ela é Julia Pastrana, mexicana nascida com o corpo coberto de pelos e gengivas atrofiadas e conhecida como "mulher-macaco". Um evento promovido por um artista plástico mexicano e seu convidado, um terapeuta multidimensional e artista performático, transforma-se numa sessão mediúnica. O público esperava que o espírito de Julia Pastrana se fizesse presente, mas quem fala através do terapeuta é o marido e empresário dela, o russo Theodore Lent. Que foi acusado de explorá-la financeiramente, mesmo depois de morta, quando ela foi embalsamada e exposta em diversos lugares. Lent aproveita para se defender de todas as acusações...
A Emanação: o assaltante Li Xun padece no inferno tibetano, onde a danação é temporária. Morto por um capataz, renasce três décadas depois como funcionário público chinês num departamento que emite normas sobre a escolha do próximo Dalai Lama. Acha bizarro que um governo comunista e oficialmente ateu legisle sobre assuntos teológicos, mas é um funcionário cumpridor de ordens etc. Tibetanos creem que a qualquer tempo a essência do iluminado pode se manifestar em outros seres e esse processo se chama emanação. Antes ou depois da morte do Dalai, é Ele e apenas Ele, quem pode escolher o que acontecerá com sua essência divina. Então ocorre que certo dia Li Xun......
Deus Não Se Vai Incomodar: Moacyr, funcionário público, na ausência de Isaías, colega de repartição, aproveita para ouvir pagode e ver mulher pelada na internet. Isaías é evangélico, todo certinho e Moacyr é curioso, vai mexer nas coisas dele. Acha uns CDs e leva para casa um que tem o Cid Moreira na capa. Toma o resto de uma Coca meio sem gás, acende um baseado, liga o CD player e se deita no sofá. Tocam trombetas depois começa a locução. Moacyr não gosta do que ouve, aperta o botão stop do player, mas a voz continua a dizer salmos. Arranca o fio do aparelho da tomada mas a voz diz que não gosta de ser interrompida. Assustado, Moacyr pergunta quem está falando. A voz responde... Não é Cid Moreira e menos ainda Sérgio Chapelin.
As Formigas: menininho de quatro anos brinca numa praça de Buenos Aires. Está prestes a esmagar uma fileira de formigas sob seu calçado. Sua babá lhe pede que não faça isso com as pobrezinhas, que elas são muito trabalhadeiras. Esses insetos, de uma espécie local, formiga argentina, encontram-se divididos entre reprodutoras (rainhas), não-reprodutoras (operárias) e machos reprodutores. O comportamento social das formigas encontra paralelo na sociedade humana através da história de algumas mulheres que se interrelacionam no desenvolvimento desta trama. Ana, a babá, é uma delas.
Alguns Humanos: o décimo conto, que dá título ao livro, dialoga com o segundo, já a partir do título, Alguns Primatas. Ambos têm a ver com o processo de escrita, de contar uma história e de como ela é recebida pelo outro, que a ouve ou lê, que pode querer completá-la ou mesmo modificá-la (reduzi-la, no caso). Pacheco faz aqui uma brincadeira com seu próprio livro: a autora e um amigo conversam. Ela pede a opinião dele sobre o que escreveu. Ele diz que cortaria uma parte grande, onde são mencionados macacos. Ela discorda: "Mas o livro não é sobre macacos. É sobre humanos. Está no título." E por aí vai...
Ambystoma Mexicanum ou O Labirinto Invisível: nome científico do axolote, uma espécie de salamandra aquática que não se desenvolve na fase de larva e tem grande capacidade de regeneração (veja a capa do livro). Tudo isso para entender um pouco o comportamento de Marcelo, um tanto similar ao do anfíbio mexicano. Ele tem 37 anos mas se mantém um tanto adolescente em seus modos, como se ainda tivesse uns 22. Foi quando abandonou a faculdade para ser músico: cresceu mas não evoluiu tanto assim. Aí surge Flavia em sua vida, um pouco mais velha, muito rica, muito protetora, disposta a cuidar dele como o dono de um axolote cuida de seu animalzinho de aquário. Coisas acontecem: conseguirá Marcelo sair do labirinto invisível em que se meteu? “Axolotl” é também o título de um conto de Julio Cortázar, mencionado na história.
Este é um livro muito bonito, em capa dura, papel especial e marcador de páginas de cetim (ou outro tecido, não sei bem), também muito caro, mas que por sua qualidade literária valeu o preço que paguei. Verdade que uns contos são mais interessantes do que outros, mas no geral todos acabam por conquistar o leitor irremediavelmente. São histórias passadas em diversas épocas e lugares, discorrendo sobre temas variados, quase todas com uma pitada de ciência e ao mesmo tempo plenas de imaginação. Elas fazem crer que Gustavo Pacheco, com seu livro de estreia, trouxe certa oxigenação para o conto brasileiro, ultimamente meio sem ar com tanta realidade a carregar nas costas, conforme apontam alguns especialistas.