A vida modo de usar - Georges Perec
Obra volumosa, elaborada a partir de regras matemáticas, traz inúmeras histórias, nem todas interessantes, mas impressiona por suas qualidades formais; leitor é convidado (ou obrigado, depende) a entrar num jogo que envolve enxadrismo, Joyce, Borges, Flaubert, Melville, Kafka...
Georges Perec - A vida modo de usar, São Paulo, Companhia de Bolso, 2009
Há muita coisa interessante para se escrever ao final da leitura de A Vida Modo de Usar (La Vie Mode D’Emploi: Romans), mas isso não é uma resenha propriamente, apenas um resumo, alguns comentários. Extensos, porque a obra não apenas é volumosa (daí seu subtítulo Romances), também é diferenciada. Com A Vida... foram quatro leituras de obras de Georges Perec (1936-1982): A Coleção Particular (Cosac Naify, 2005), Um Homem Que Dorme (Nova Fronteira, 1988) e Tentativa de Esgotamento de Um Local Parisiense (Gustavo Gili, 2016). Todos livros bastante diferentes entre si, distantes da literatura tradicional, dos relatos e histórias lineares que, paradoxalmente, são as que mais aprecio. A Vida... é o mais longo de todos os livros de Perec, também o mais complexo.
Sobre ele Italo Calvino escreveu que se tratava de um hiper-romance. Põe hiper nisso: o volume é dividido em seis partes, com noventa e nove capítulos e cerca de seiscentas e oitenta páginas, um calhamaço com preâmbulo, epílogo, anexos etc. Levou quase dez anos para ser escrito (de 1969 a 1978), é considerado um marco da moderna literatura francesa e foi listado por especialistas brasileiros como um cem melhores romances do século XX, conforme a FSP, 2006. Nessa lista também estão autores que como Perec fizeram parte do movimento literário renovador OuLiPo (Ouvroir de Littérature Potentielle, algo como Oficina ou Laboratório de Literatura Potencial): Raymond Queneau (Zazie no Metrô) e o próprio Ítalo Calvino (O Visconde Partido ao Meio).
Exemplar adquirido há tempos, pensava que teria alguma dificuldade para chegar ao final (mas nada como em Ulysses, de James Joyce, nem de longe) e, por ser volumoso, que me tomaria muito tempo de leitura. Fiquei mais animado ao ler o seguinte trecho da resenha de Paul Auster no New York Times quando do lançamento da edição americana do livro em 1987: “Para ler Perec, deve-se estar pronto para abandonar-se ao espírito do jogo. Seus livros são ornamentados com armadilhas intelectuais, alusões e sistemas secretos, e, se não são necessariamente profundos (no sentido em que Tolstoi ou Mann são profundos), são prodigiosamente divertidos (no sentido em que Lewis Carrol ou Laurence Sterne são divertidos).” Mesmo tendo lido e apreciado obras desses autores e também aquelas do próprio Perec, o que encontrei em A Vida... foi completamente diferente de qualquer ideia anterior que eu tivesse sobre o livro.
Que pode ser associado a outros livros diferenciados, como os textos de Jorge Luis Borges (de quem li Ficções e um ou outro livro e nem os apreciei tanto assim), ou até mesmo a outro argentino, Julio Cortázar e seu O Jogo da Amarelinha. E claro, ao Ulysses, de James Joyce, que é, digamos assim, aqui homenageado por Perec, mas não apenas ele. Resumidamente, A Vida... conta a história de um fictício edifício francês quase centenário, desde os anos finais do século XIX (mais ou menos a partir de 1885) até 1975, mas não cronologicamente e sim segundo os movimentos que jogadores executam numa partida de xadrez, mais ou menos isso. Quer dizer, Perec propõe uma espécie de jogo que percorre exaustivamente os diferentes espaços do prédio situado no número 11 da rua Simon-Crubellier em Paris, através de diversas histórias, algumas contadas corriqueiramente enquanto outras são carregadas de elementos excêntricos e ou fantasiosos.
Juntamente (misturadamente) com a história do edifício é contada a história de seus vários moradores, do passado e do presente (1975), suas vivências, experiências, peculiaridades, profissões, costumes etc. São descritos com muitos detalhes não apenas seus apartamentos, os cômodos que ocuparam, móveis e decoração que ostentavam, as escadarias e os corredores que percorreram, também o elevador, a portaria, o hall de entrada, os depósitos do edifício etc. Mesmo que curiosas, tantas informações (descrições, na maioria das vezes) podem tornar a leitura um tanto aborrecida porque Perec apresenta enormes listas de coisas encontradas no prédio e nos apartamentos. Um hábito ou recurso ou coisa parecida que parece ter levado ao extremo em seu estudo urbano já mencionado, Tentativas de Esgotamento..., o que também pode esgotar um pouco a paciência do leitor.
Além das corriqueiras descrições e várias informações que vai passando, Perec se vale de diversos outros recursos, colagens, palavras cruzadas, planta do edifício etc. para contar sua história, principalmente pelo uso de distintos gêneros literários. Como os romances de aventura, casos policiais, narrativas românticas e outras, dos quais retira citações, “às vezes ligeiramente modificadas”, como ele mesmo escreve. Elas pertencem a autores conhecidos, como Joyce, Kafka, Melville, Borges, Nabokov, Proust e outros, todos relacionados no final do volume, mas sem as indicações das citações, porque o livro em si mesmo é um jogo, um puzzle, um quebra-cabeças.
Gustave Flaubert também é citado e muita gente acredita que A Vida... pode ser uma espécie de continuação de Bouvard e Pécuchet, obra inacabada do autor de Madame Bovary, que traz alguns momentos engraçados mas no geral é bastante rebuscada, erudita, enciclopédica mesmo. Mais ou menos como ocorre com o livro de Perec, pleno de erudição e conhecimento. Entre outras coisas, ele mistura personagens que realmente existiram com criaturas ficcionais, como é o caso do etnógrafo austríaco Marcel Appenzzell, discípulo do antropólogo Bronislaw Malinowski (o polonês realmente existiu, assim como Marcel Mauss, outro estudioso citado) que parte para Sumatra na tentativa de encontrar os anadalams, um povo-fantasma, numa das histórias mais interessantes do volume, talvez a melhor. Perec a chamou de História do antropólogo incompreendido. São muitas as histórias que ele conta, nem todas interessantes, é verdade, ainda que seus títulos por vezes o sejam.
Eis alguns títulos, de histórias interessantes ou não: História do acrobata que não queria mais descer do trapézio (lembrou-se do Kafka, certo?); História do antigo veterinário apaixonado por uma marselhesa de bigode; História do boxeador negro que perdia todas as lutas; História do chefe de depósito que reúne provas da sobrevivência de Hitler; História do decorador que teve de demolir a cozinha de que tanto se orgulhava; História do diplomata sueco (outra história muito interessante, com lances policialescos que, penso, pode muito bem lembrar os livros de Agatha Christie, igualmente citada pelo autor); História do hamster privado de seu jogo favorito; História do joalheiro que foi assassinado três vezes; História do magistrado e de sua mulher que se tornaram assaltantes; História da mulher que fez o diabo aparecer vinte e quatro vezes; História do homem que pintava aquarelas para transformá-las em puzzles; História do velho mordomo que acompanha o patrão numa volta ao mundo; História do fabricante de puzzles etc.
Essas três últimas histórias (mas que não são as últimas do volume) podem ser entendidas como as mais importantes da narrativa, em torno das quais A Vida... parece girar, já que não há propriamente um enredo claro a ser seguido, mas perseguido: sabe-se porém que por trás também há uma história de vingança, urdida com paciência e minúcia, como alerta o próprio Perec ao escrever sobre um determinado personagem. Três deles merecem mais destaque, todos residentes no imóvel parisiense: o excêntrico milionário inglês Percival Bartlebooth (o pintor de aquarelas), Mortimer Smautf, seu fiel criado, que o acompanhou em viagens pelo mundo durante muitos anos, e finalmente, Gaspard Winckler, o artífice que transformava as aquarelas pintadas pelo milionário em quebra-cabeças. Mas os relatos não são contados sequencialmente, claro, porque o livro é, em si mesmo, como já foi dito e agora repetido, um jogo e cabe ao leitor juntas as peças, quer dizer, as histórias.
Bartlebooth é intencionalmente um nome composto: parte vem de Bartleby, o famoso escriturário criado por Herman Melville (autor citado no final do livro) e parte vem do personagem Barnabooth, espécie de alter ego do escritor francês Valery Larvaud (autor não citado). Essa é uma das artimanhas (ou brincadeiras) que Perec usa, das mais fáceis de descobrir. Bartlebooth foi o único nome sobre o qual pesquisei, não fui além dele; imagino que se pode passar longo tempo tentando encontrar trechos de outros autores citados por Perec, referências diversas ou identificar nomes, lugares, coisas etc. que funcionam como enigmas a desvendar (isso lembra um tanto os jogos de Joyce em Ulysses, não?).
Continuando: entre 1935 e 1954 o milionário Bartlebooth viaja pelo mundo acompanhado de seu fiel criado Smautf. Ele se propôs pintar 500 aquarelas de diferentes marinas, portos, na verdade, que depois serão transformadas em 500 quebra-cabeças, cada qual com 750 peças, que serão guardados em 500 caixas, uma para cada puzzle. Durante os vinte anos em que dura a viagem, conforme vão ficando prontas Smautf vai despachando as aquarelas para Paris aos cuidados do artífice Gaspard Wrinckle, contratado por Bartlebooth para transformá-las em quebra-cabeças. Enquanto isso (e outras coisas que se desenrolam em Paris e em outras partes do mundo), vamos conhecendo o edifício e seus moradores desde o final do século XIX até os dias atuais (1975).
Bartlebooth encerra sua viagem em 1954 e o último quebra-cabeças confeccionado por Winckler ficará pronto em 1955. A partir de então o excêntrico inglês passará o resto da vida montando os jogos, que foram previamente desmontados e conservados em suas caixas individuais. Mas um dia, enquanto se dedica à montagem de um dos quebra-cabeças, Bartlebooth... Bem, aí é necessário ler A Vida Modo de Usar para ficar sabendo seu final (ou finais, seria melhor dizer). E mesmo assim algumas dúvidas poderão permanecer com o leitor. Parece não haver livro algum em português que sirva de roteiro de leitura para a obra de Perec (como há para o Ulysses de Joyce), que tenha sido editado na França ou alhures. Eu apreciaria muito conhecê-lo se houvesse...