A Longa M@rcha
Todo leitor que se preze sabe o quanto os livros são capazes de povoar o imaginário e, ás vezes, o enredo adquire vida própria assombrando os pesadelos, como errantes espíritos possessores, quem sabe se fazendo necessário mobilizar uma espécie de “exorcista das palavras” para defenestrar um pouco esse incessante mal. Talvez “A Longa Marcha”, livro publicado por Stephen King com pseudônimo de Richard Bachman, não seja capaz de atemorizar o leitor em tão acentuada proporção, mas se a mente estiver um pouco aberta irremediavelmente ele irá ocupar espaço e suscitar reflexões até perturbantes.
Ray Garraty é um dos muitos jovens que contraria a vontade da família (nesse caso da mãe) para participar de uma tradicional prova de resistência conhecida como A Longa Marcha. A premissa para a competição anual até pode ser inusitada, embora seja dotada de pouca complexidade. Consiste na formação de um grupo de 100 adolescentes (respeitando idade mínima e máxima) que irá andejar por um trecho pré-estabelecido, cruzando estradas e rodovias norte-americanas, escoltados por soldados percorrendo o trajeto em semilagartas e por populares deleitados com o evento.
As regras são simples: os participantes devem se manter em movimento constante, respeitando uma velocidade mínima. Caso interrompa a cinesia ou fique abaixo da velocidade determinada, será contemplado por uma advertência, sendo permitido acumular não mais do que três. Uma vez advertido, o integrante precisará ficar incólume por 60 minutos até a reprimenda ser abonada.
O acúmulo de quatro infrações gerará o chamado bilhete, uma condição irrevogável que não apenas significa sua retirada da prova como o preço pela desclassificação somente poderá ser pago com a própria vida. Não há um ponto final para a marcha, como uma linha de chegada. A prova perdurará até que a disputa se resuma a dois participantes, eclodindo assim o vencedor. Como prêmio lhe será permitido a realização de um desejo.
No livro, publicado em 1979, King envereda por caminhos um tanto dissonantes dos comumente adotados em suas narrativas. Evoca uma concepção textual direta, tensa, tendo a criatividade como diferencial diante de caminhos tão tortuosos, viscerais, austeros, impiedosos em demasia. O autor ilustra bem as dores da escolha e de como a iminência da morte é capaz de baralhar o psicológico, com o coração dilapidado a cada estampido, um prenúncio de que o fim se aproxima.
O romance pode ser concebido sob a luz de perspectivas dissemelhantes. A sensação é de se estar diante de uma imprevisível e inventiva metáfora acerca da vida. Pode ser compreendida como uma história estampada por indivíduos alvejados por suas agruras, reunindo forças para desvendar seu melhor lugar ao mundo. E essa jornada incessante só chegará ao fim no instante do desencarne.
No momento inaugural da marcha, impera entre os participantes um clima bastante ameno, como se todos estivessem dispostos a sair logo dali para tomar um chope e azarar umas gatinhas. Á medida em que vão ficando extenuados, a cada passo dado, ao invés de distanciarem, faz com que se sintam ainda mais confrontados pela morte. Exauridos, testemunham as forças, em ritmo apressurado, sendo drenadas de dentro deles com volúpia. Nessa hora, as relações passam a atingir sobressaltos inquietantes, esmiuçando as idiossincrasias.
Antes que esse percurso adejante se encerre, embora a “A Longa Marcha” dificilmente estampe as listas de melhores livros de Stephen King formuladas por seus fiéis leitores, a narrativa digna de três estrelas (em universo de cinco), não precisou recorrer a uma extremada peregrinação, rumo ao infinito, para ser tão assertiva enquanto ferramenta de introspecção. O melhor ainda é ter atingido essa condição diante de doses cavalares de reflexão.