UM DEFEITO DE COR, de Ana Maria Gonçalves

Um defeito de cor é o segundo livro de Ana Maria Gonçalves e conta a história de Kehinde, negra capturada ainda criança na África e trazida para o Brasil, onde vive muitos anos, tem filhos, torna-se liberta, participa de revoltas de escravos e retorna para a África. Aproximadamente 8 décadas da vida protagonista, como plano de fundo a história do Brasil (e um pouco da África).

A narração escolhida pela autora é a primeira pessoa e se torna cansativa em se tratando de 952 páginas. Expressões como "eu fiz isso", "eu estava assim" e "eu fui ali" são repetidas inúmeras vezes. E ainda piora: lá perto da metade do livro, quando nasce o segundo filho de Kehinde, ela começa a referir-se ao leitor como "você", como se o restante do livro fosse uma carta. Causa uma sensação estranha você se colocar no lugar do filho dela ou estar lendo uma carta que era para ele. O uso de palavreado atual também não convence como sendo a narração de alguém do século XIX, antes faz parecer como se uma atriz pouco talentosa interpretasse um papel histórico.

O crescimento físico, intelectual e moral de Kehinde da infância à velhice é narrado de maneira confusa. Apesar do livro ser as memórias escritas da Kehinde idosa (por sinal uma memória fenomenal), aparecem expressões que não condizem com a Kehinde narradora onisciente, mas com a Kehinde protagonista. Em outras passagens isso se inverte. Fica difícil ler a menina Kehinde falando sobre o estupro como "algo que devia doer" e pouco depois raciocinar como adulta sobre eventos que ainda nem ocorreram. Seria muito mais verossimilhante se a autora optasse por apenas uma das duas Kehindes ou separasse explicitamente quando uma ou outra atua.

Relevando a narração escolhida pela Ana Maria, o texto assemelha-se muito a uma coluna policial, contando tragédia após tragédia, de modo objetivo, direto e sem floreios na escrita. São tantos altos e baixos na vida de Kehinde que acaba tornando cansativa, novamente, a leitura. É certo que a fórmula universal para boas histórias prega que devem ter problemas a serem superados pelo protogonista, mas o excesso nunca é bem visto.

Excesso. Essa é a palavra que define o livro. Há excesso de informações que não significam nada para a trama. Mostra-se em várias páginas o funcionamento de um engenho de cana-de-açúcar. Ou detalha-se cômodo por cômodo, móvel por móvel, uma mansão (o Solar) onde Kehinde mora pouquíssimo tempo. Conta-se até sobre Tiradentes, mineiro que aparece de gaiato numa história que se passa a maior parte do tempo em cidades do litoral. A impressão que fica é que a autora, em suas pesquisas para escrever o livro, juntou uma quantidade enorme de informações que julgou interessantes e procurou encaixá-las a todo custo na história. Se não fosse por esse exagero provavelmente o tamanho do livro diminuiria 50% ou mais.

Mas o livro não é de todo ruim. Está sendo considerado responsável por preencher uma lacuna na literatura brasileira, mostrando a escravidão sob o ponto de vista dos maiores prejudicados, os negros. Eu também voto a favor nesse aspecto, porém com a ressalva que tais lacunas devem ser bem preenchidas com arte além de apenas informações. O livro é também indicado como fonte de informações históricas, devido à louvável e extensa pesquisa da Ana Maria, apesar de não ter nenhum índice que oriente onde aparecem a revolta dos escravos mussurumins, ou as informações sobre Tiradentes, ou os extensivos detalhes sobre as origens e rituais das crenças afro-brasileiras, ou qualquer outro material da época que seja difícil encontrar informações avulsas hoje. O leitor terá de ler o livro todo e marcar onde as informações que julgar importantes se encontram, para uma consulta futura.

O livro tirou o segundo lugar na Copa de Literatura Brasileira (CLB), perdendo apenas para Música Perdida, de Luiz Antonio de Assis Brasil. Perdeu porque são livros totalmente diferentes. Enquanto Um defeito de cor explora uma boa história, Música Perdida explora como contar bem uma história, mesmo que inferior. E é essa a diferença essencial que fez com que mais leitores preferissem um ao outro.

Em um país em que a média anual de leitura é de 1,8 livros per capita, acredito que muito mais leitores seriam conquistados por Um defeito de cor se este fosse menor em tamanho ou se fosse uma série de livros com menos de 200 páginas cada. O estilo está bom, pois agrada os menos exigentes. Todavia, a autora teria de exigir muito mais da sua capacidade artística e literária do que da de jornalista e pesquisadora. Pena, pois a lacuna literária sobre a escravidão no Brasil, apesar de estar um pouco mais preenchida do lado da escrita, deverá continuar ainda bastante aberta pelo lado da leitura. Será um livro fadado a ser lido por poucos, seja pelo tamanho, seja pelo preço.

Leia o texto na íntegra em www.jefferson.blog.br