Breves palavras sobre "Tudo é rio", de Carla Madeira
Não demorou muito para que a leitura de "Tudo é rio" me causasse duas impressões: primeiro, me trouxe à lembrança os contos de Nelson Rodrigues ("A vida como ela é"), pois sua trama é composta de situações que atacam o convencionalismo da sociedade, por meio de ingredientes como sexo e prostituição, paixão, adultério, assassinato e a moralidade em geral. Ou seja, expõe em carne viva o que uma pessoa é capaz de fazer, desde o crime até o perdão, e as motivações particulares que estão por trás das atitudes. Nesse ponto, a realidade do livro é nua e crua: a vida é dura, injusta, incompreensível em seus acasos e eventos, de onde alguns saem impunes, enquanto outros sofrem aparentemente sem merecer. Porém, essas motivações, quando estão lá ou são deduzidas pelo leitor, acabam transformando os personagens não tanto em pessoas "reais", mas sim meras peças a favor da história que se propõe contar.
Isso porque, e agora vem a segunda impressão, logo percebi que seria melhor ler esse livro como uma fábula - aquelas histórias que compõem-se de algum exagero, fantasia ou sobrenatural (como "O Auto da Compadecida", "Incidente em Antares", etc), com aquele velho cenário de uma cidade onde as polêmicas que acontecem ficam circunscritas ali, envolvendo toda a população ou se ocultando de todos eles. Pois, como exemplo, temos uma prostituta que encanta e domina todos os homens, inclusive os casados, criando uma rede de mútua cooperação, e que intencionalmente faz de seu comportamento despudorado um espetáculo orgulhoso. Todas essas características e as conveniências da história acabam transformando-a numa caricatura - parece uma bruxa que está lançando um feitiço em cima da cidade (lembrei do conto O flautista de Hamelin - aqui, no lugar dos ratos são os homens, seguindo a mulher que os seduz como que por mágica, não com uma flauta, mas com uma espécie de irresistível canto de sereia). Pensando bem, foi a impressão que eu tive de todos os personagens principais: "caricaturescos", com cada um vestindo a máscara teatral que representa sua personalidade exacerbada nas suas características.
Então, acionei esse modo de ler: flexibilizando a realidade, relativizando a verossimilhança, sem questionar para onde os personagens vão, e sim apenas me propondo a ver para onde a autora queria levá-los. Assim, não me decepcionei com o final, como vi em alguns outros comentários, pois ao longo do livro eu fui me abrindo cada vez mais para qualquer coisa que viesse pela frente, e ele é coeso nesse sentido, ou seja, mantém-se fiel ao estilo que mostra nas primeiras páginas, e acabou sendo bem dosado entre começo, meio e fim. No geral, foi uma leitura muito fluida (li esse livro em um fim de semana) e que, por estes mesmos aspectos, acaba prendendo o leitor na curiosidade de ver aonde vai parar.