Extinção - Thomas Bernhard
A ovelha negra de Wolfsegg
Thomas Bernhard - Extinção, SP, Companhia das Letras, 2000
Professor de literatura alemã, culto, viajado, quarentão e solteiro, Franz-Josef Murau vive em Roma. Raramente visita Wolfsegg, o latifúndio paterno na Alta Áustria, onde nasceu e seus familiares permanecem aferrados às tradições. A região é, como ele mesmo diz, um reduto católico e nacional-socialista; seus pais abrigaram nazistas logo depois da guerra enquanto eram caçados em outras partes do mundo.
Franz-Josef Murau tem motivos de sobra para detestar a Áustria e os austríacos. Acima de tudo ele ama Roma e a Itália. Acha o alemão uma língua grosseira, vulgar mesmo, e muita coisa mais é assim também em seu país de origem, ele pensa. Pois bem: três dias após voltar da casa paterna, do casamento de uma de suas irmãs, ele recebe na capital italiana um telegrama comunicando que seus pais e o irmão faleceram num acidente de automóvel.
Esse fato desencadeia em Murau um fluxo de pensamentos e lembranças extremamente negativos que vai crescendo a cada página, de modo exasperante. Entende-se: ele tem de deixar sua amada Roma, voltar ao lugar que renega com suas mais profundas forças, reencontrar suas irmãs e o cunhado, sabendo ainda que várias personalidades locais e nacionais, todas detestáveis, estarão lá para as cerimônias fúnebres. Finalmente, terá de decidir o futuro da propriedade da família. E ficamos imaginando que tudo isso será devastador para ele.
Extinção está dividida em duas partes, O telegrama e O testamento. Cada qual contém apenas um imenso parágrafo em que as coisas ditas e pensadas pelo protagonista são repetidas à exaustão, como acontece em vários dos livros de TB, pelo menos naqueles que li. Em ambas as partes, na maior parte do tempo, Murau se dedica a maldizer os pais, os irmãos, outros parentes, a Áustria e quase todos os seus habitantes. Escapam a paisagem alpina, um tanto da arquitetura e um e outro artista do país.
Ele se revela respeitoso ou amoroso para com poucos: o tio Georg, irmão do pai já morto, que morava na França; Alexander, um primo envolvido em causas humanitárias que vive em Bruxelas e Gambetti, seu aplicado aluno romano; nenhum deles residindo na Áustria, portanto. Murau também diz amar fraternalmente alguns empregados da família, pessoas boas, simples, que conhece desde a infância. Com quem se sente mais à vontade do que se estivesse com gente rica, notável; alguns que foram seus colegas de escola e depois adultos se tornaram jardineiros em Wolfsegg.
Prosseguindo, Murau diz que um dia ainda vai escrever um livro ao qual dará o título de Extinção (igual ao do livro que estamos lendo) e nele contará, entre outras coisas, a história sofrida de um trabalhador das vizinhanças de Wolfsegg denunciado por outro vizinho, nazista, por ouvir uma rádio estrangeira durante a guerra, crime que pagará na prisão. Só que toda a história desses homens já nos é contada aqui mesmo, neste Extinção que estamos lendo (e algumas coisas somente serão conhecidas na última página do livro).
Simultaneamente, Franz-Josef Murau é e não é o próprio Thomas Bernhard. Murau é um personagem culto, denso, um tanto estressado, mas quem leu Origem – que não é uma biografia, mas os escritos autobiográficos de TB e que, ao contrário de Murau, era filho único e teve uma infância e juventude sofríveis – vai constatar que personagem e autor têm muito em comum, demais até, mesmo porque no fundo todo livro de um modo ou de outro acaba sendo autobiográfico. São muitas as pontes que se estabelecem entre Extinção (ficção) e Origem (relatos autobiográficos), também com outro grande pequeno livro de TB, O Náufrago. Ou, em outras palavras, esses livros todos dialogam bastante entre si.
Um trecho de Extinção sobre a política na Áustria de Murau: “Que criaturas abomináveis hoje detêm o poder (...). Os mais repulsivos e os mais sórdidos têm tudo nas mãos e estão prestes a destruir tudo o que seja de valia. (...) E tudo em nome do socialismo, com a hipocrisia mais repugnante que se possa imaginar (...). [Agem] sentados em seus traseiros balofos nas milhares e centenas de milhares de repartições em todos os recantos do Estado. (...) [O país está sendo] deliberadamente devastado e desfigurado, vítima de negócios pérfidos, no qual de fato a coisa mais difícil é encontrar um recanto intacto.” Poxa! Parece um retrato do Brasil sob o petismo, não? Também sob o bolsonarismo, a outra face suja de nosso país. Murau falava da cena política austríaca dos anos 1980, mas certas desgraças, sob outras denominações, se repetem na história de tempos em tempos...
Não é somente a política, a religião, a educação, as artes ou as relações familiares e sociais que vão sendo detonadas por Murau ao longo das 476 páginas do livro. Pouca coisa escapa da mira de sua metralhadora giratória de censuras, críticas e insultos. Mas é bom deixar claro neste (enorme) resumo, para quem não leu a obra, que nada do que ele põe para fora – e repete o tempo todo, incansavelmente – seja produto de uma mente insana ou que venha à tona de forma gratuita. Não é nada disso, evidentemente.
Como destaca a editora brasileira de Extinção, ao ter de refazer a viagem recém-concluída, participar de rituais fúnebres que se repetem há séculos, Murau repete em palavras, extensivamente, a torrente de suas memórias. É o modo de que se vale para apagar qualquer vestígio que continue a ligá-lo à origem odiada. Ele diz a certa altura: "Estou de fato retalhando e dissecando Wolfsegg e os meus, aniquilando-os, extinguindo-os, e retalho e disseco dessa forma a mim mesmo, disseco-me, aniquilo-me, extingo-me". Portanto aqui está se falando de autodestruição. Extinção é basicamente sobre isso: autodestruição.
Depois de O Imitador de Vozes, O Náufrago, Origem e agora Extinção não espanta mais saber que TB não se matou, como imediatamente pensei após ler as pequenas histórias de O Imitador..., quase todas macabras. Ele morreu em decorrência de problemas cardíacos em 1989, aos 58 anos, deixando uma obra que o coloca entre os grandes escritores germanófilos do século XX. Gente do porte do tcheco Franz Kafka, do suíço Robert Walser, do búlgaro Elias Canetti, do austríaco Robert Musil etc. Por todas as suas qualidades literárias e as muitas polêmicas que suscita, Extinção é seguramente um livro merecedor de cinco estrelas. Ou de dez estrelas, sempre que essa nota for possível...