Viver! (Várias Histórias) - de Machado de Assis.
Um conto, ou um diálogo?
Um conto, que se resume a um diálogo, diálogo inusitado, entre dois mitos, um grego e um judeu, Prometeu e Ahasverus, aquele, porque deu aos homens o fogo, foi condenado ao suplício eterno, agrilhoado a uma rocha, abutre a devorar-lhe, durante o dia, o fígado, que se reconstitui durante a noite; este, porque enxotou Jesus Cristo, que, sob a cruz, carregando-a, veio a cair-lhe à porta, foi condenado a viver, errante, sem descanso, até não restar nenhum humano sobre a face da Terra.
O diálogo interessante, e intrigante.
No princípio, acreditando-se o único humano vivo, Ahasverus alegra-se, certo de, enfim, encontrar a morte tão desejada; todavia, surpreende-o uma voz, e se vê, então, na companhia de outro ser da sua espécie, o grego. Conversam. O colóquio, digno de um drama, poderia figurar nos anais das lendas cosmogônicas que tratam de eventos dos primórdios da existência humana.
Ahasverus reconhece que não se apiedara do Filho de Deus, Cristo, que, exausto, lhe caíra à porta, e declara que sofrera condenação excessiva, desproporcional à falta cometida, no que Prometeu corrigiu-o,pois entendia-o merecedor de punição mais severa, e não a que recebera, branda, no seu entender, afinal, diz, Ahasverus assistiu, durante milênios, aos padecimentos dos humanos, mas nenhum sofrimento padeceu.
Declara-se Prometeu inocente do crime que lhe imputaram, pois seu ato não foi criminoso: ele, o criador dos primeiros homens, a eles deu o fogo dos deuses. Contrariado ao saber do evento, Júpiter condenou-o ao suplício eterno, assim reza a lenda, que Ésquilo conta no Prometeu Acorrentado, obra-prima imorredoura.
Ao saber que era seu interlocutor o criador dos primeiros homens, Ahasverus declara-lhe que ele merecia punição mais severa do que a que recebera e que ele estava na origem dos males que afligiam a ele, Ahasverus, que, enraivecido, ameaça-o agrilhoá-lo à rocha para que ele padecesse do suplício ao qual Júpiter o havia condenado e do qual Hércules o libertara, e cumpre a ameaça. E Prometeu, antevendo-lhe o futuro, vaticina: Ahasverus o libertaria, ele, Ahasverus, seria o novo Hércules, e, para persuadi-lo da correção da profecia, com oratória sedutora - e os helenos eram mestres da oratória - descreve-lhe o futuro alvissareiro que lhe estava reservado. E linhas depois encerra-se o conto, de final inusitado, tão inusitado quanto à proposta do autor.
Com uma pulga atrás da orelha, pergunto qual foi o objetivo de Machado de Assis ao escrever tal conto. Prometeu, que favoreceu os homens, prevaleceu, em sua sagacidade, ao homem que malfizera a Cristo. Prometeu é grego, e Ahasverus, judeu. Fez deles Machado de Assis emblemas de seus respectivos povos, sendo, portanto, o povo grego benfeitor dos homens, e o judeu seu malfeitor?! Porque desconheço o conceito que Machado de Assis fazia do povo grego e do povo judeu, não ouso dar uma resposta para a pergunta que me faço.