MÚSICA PERDIDA, de Luiz Antonio de Assis Brasil
"O bom escritor é o que diz aquilo que pensamos - ou que julgávamos pensar. E são poucos. As pessoas que lêem demais ficam cínicas ou cabotinas, perdendo a ilusão da vida." (pg. 177)
Um livro para ser ouvido como se ouve uma bela sinfonia. Não, não se trata de mais um audio-book, tão na moda e disseminados pela internet. Antes, é um livro que sensibiliza o ouvido do leitor. Escuta-se o ritmo, os acordes, as notas da saga do maestro Joaquim José de Mendanha, protagonista de Música Perdida, de Luiz Antonio de Assis Brasil, de uma maneira tão rítmica que as palavras soam como música. Um efeito similar ao causado pelo livro (que depois virou filme) O Perfume: a história de um assassino, do alemão Patrick Süskind, porém onde o sentido aguçado pela leitura era o olfato.
Apesar de Assis Brasil já ter sido músico e escrito outros dois livros sobre o tema música, Música Perdida deixa transparecer que não tem como público-alvo os músicos especialistas, pelo contrário, parece que foi escrito para os que não entendem nada ou não apreciam ler sobre música. O autor flui de maneira tão suave e natural que até quem não se sente atraído pelo tema gostará de lê-lo. Admito que se o livro não fosse um dos finalistas da Copa de Literatura Brasileira e eu um dos jurados, nem o título, nem a capa, nem a história chamariam a minha atenção em uma livraria para levá-lo comigo. Ainda bem que existem coincidências no Universo (frase dita ironicamente por alguém que não acredita em coincidências).
No livro presenciamos um grande escritor mostrando plenamente o seu talento. Por isso, o livro acabou ganhando merecidamente o primeiro prêmio (CLB) de melhor romance brasileiro lançado em 2006. O estilo do autor fez-me perceber há quanto tempo eu não lia um livro bem escrito e deixa claro que ele se importa realmente com o que escreve e com quem lê o que ele escreve. Não há erros de português. Aprende-se algumas palavras novas. Há várias frases e pensamentos a serem copiados na agenda. Os que possuem a arte de escrever bem e agradar são raros, principalmente dentre os escritores brasileiros contemporâneos. Na minha modesta opinião, Música Perdida deveria ser citado e utilizado pelas gramáticas e professores de língua portuguesa nas salas de aula para mostrar que temos hoje quem possa nos representar - e bem - no campo da literatura.
O livro narra a história do jovem Quincazé desde a infância até tornar-se o maestro Joaquim José de Mendanha. O maestro Mendanha foi um personagem real da história do Brasil que compôs o hino do Rio Grande do Sul. Outro personagem real foi o padre-mestre José Maurício Nunes Garcia. Não sabemos o quanto Assis Brasil se baseou na história verídica para escrever o seu livro, mas nem importa, a obra já entra com destaque para o rol dos romances-históricos brasileiros.
Mendanha possui um dom e uma maldição: o ouvido absoluto, capaz de identificar notas musicais naturalmente. Fato percebido primeiro pelo pai, no interior de Minas Gerais, que o manda estudar fora com a esperança de o filho tomar o seu lugar na Lira da pequena cidade de Itabira do Campo.
No trajeto, mais precisamente em Vila Rica, Mendanha conhece Bento Arruda Bulcão, que o treina e patroneia em busca de mestres mais grandiosos no Rio de Janeiro. A relação entre Mendanha e Bulcão dá margem a inúmeras interpretações, desde as verdadeiramente altruístas até as puramente homossexuais, e o gênio de Assis Brasil neste ponto consistiu em não identificar nenhuma delas. Cada leitor interpreta a história como achar melhor, com aquilo que possui em seu íntimo.
No Rio de Janeiro é treinado pela glória da arte colonial brasileira, José Maurício Nunes Garcia, que o ensina a "dosar" sua virtude. Afinal, explica, não havia no Brasil pessoas habilitadas o suficiente para reconhecer uma obra-prima da música mundial. Mendanha estaria fadado ao fracasso por ser um gênio em um país que não lhes dá valor algum e aprecia basicamente o vulgar e popular. Garcia ensina também que a assinatura de um grande músico e compositor brasileiro está nas pequenas imperfeições, sutilmente percebidas somente por seus iguais. "Eis tudo: toda dissonância é uma preparação para a harmonia". Cabe aqui uma observação importante (conforme destacada por um dos jurados da CLB): há alguns erros teóricos (ou técnicos) sobre música no decorrer do livro, todavia estes fazem Assis Brasil exatamente igual ao seu personagem Mendanha. Sua assinatura são as pequenas imperfeições na obra, somente reconhecidas por seus iguais. E deixa uma pertinente crítica à literatura brasileira, de que não há (muitas) pessoas capazes de apreciar as obras-primas literárias atualmente escritas por aqui.
Desafiando o seu mestre, Mendanha compõe sua obra-mestra escondido, a cantata Olhai, cidadãos do mundo, que além de dar o título ao livro, acaba se perdendo e vira o eixo central no fim da trama. Nada mais dramático do que ver um personagem obtendo um último lampejo de esperança para concretizar seu maior sonho, bem como seu maior pesadelo, antes de findar a sua existência. Neste ponto, o leitor pode se beneficiar de uma ótima lição de como enfrentar a velhice, mesmo não obtendo o "sucesso" na vida ou levando algumas frustrações passadas nas costas, porém firme ao lado da pessoa amada. Pilar, a esposa de Mendanha, é o exemplo perfeito de companheira ideal. "Ela aproximou os lábios de seu ouvido: - Vou acompanhar você até o inferno, se ele existe. - Existe sim."
"A vida nunca é a mesma. Ou melhor, é sempre a mesma, mas comporta mil feições. A vida é um tema que nos é dado por Nosso Senhor Jesus Cristo. Cada qual, segundo suas habilidades, encarrega-se de elaborar as variações. por isso é que há os insensíveis e os artistas, os debochados e os virtuosos, os dóceis e os irascíveis."
Recomendo a leitura do livro por se tratar de uma escrita genuína, original e agradável. É um dos melhores que li este ano, se não o melhor. Dá vontade de ler as outras obras do autor, que em entrevista recente à revista online Malagueta admitiu ter feito uma mudança radical em seus últimos escritos, optando pela qualidade ao invés da quantidade (leia-se $$$).