A carteira de meu tio - Joaquim Manoel de Macedo
Joaquim Manoel de Macedo - A carteira de meu tio, Rio de Janeiro, Record, 2001
Mais conhecido como o autor de A Moreninha (1844), Joaquim Manuel de Macedo (1820-1882) coloca em cena em A Carteira de Meu Tio (1855), o sobrinho desse tio (o nome próprio dele nunca é mencionado), que, com o consentimento dele (e certa quantia em dinheiro), sai em viagem para conhecer o país e anotar tudo o que observa numa caderneta, a tal carteira do título. Outra coisa que o sobrinho deve levar consigo é a Constituição do Império, chamada pelo tio de "a defunta", sobre a qual ele lamenta: "Pobre mártir! Não a deixaram nunca fazer o bem que pode: apunhalaram-na, apunhalam-na ainda hoje todos os dias, e entretanto cobrem-se com o seu nome e fingem amá-la os mesmos sacrílegos que a desrespeitam, que a ferem, que a pisam aos pés." A semelhança com a situação atual do Brasil não é mera coincidência...
Essa viagem do sobrinho pelo país tem um motivo. Depois de estudar na Europa (passear e vagabundear, na verdade), ele comunica ao tio que pretende entrar na política. O velho concorda como o desejo do rapaz, mas observa: "tens as duas principais qualidades que são indispensáveis ao homem que quer subir [na vida]: és impostor e atrevido." A partir daí e até o final do livro, quer dizer, da viagem do sobrinho pelo país, o que temos é uma grandiosa sátira política, que permanece atual como nunca. Não tem como não pensar em certas figuras carimbadas da vida nacional durante toda a leitura: Sarney, Maluf, Lula, Dilma, Temer, Aras, Bolsonaro, Jucá, Renan, Cunha, José Dirceu, Gilmar Mendes, Lewandowski, Aécio, Sérgio Cabral etc.
Moral e politicamente o Brasil mudou muito pouco desde os tempos do Império até nossos dias e Macedo, se estivesse vivo hoje, ficaria espantado em ver que o progresso material da nação brasileira não teve a mesma evolução no campo dos costumes e da política. São tantas coisas imorais em comum - cambalachos, trapaças, roubalheira, péssimos serviços públicos, corrupção, impunidade, nepotismo, desvios de conduta etc. - presentes desde o Império até agora, que parece que os homens públicos brasileiros de qualquer tempo têm a mesma origem: num lamaçal igual àquele em que o cavalo do sobrinho fica atolado logo no início da viagem...
Com apenas três personagens importantes (o sobrinho, seu companheiro de viagem, Paciência e o dono de uma estalagem, Constante) e sem uma grande história - o livro não tem drama, romance, suspense, aventura ou coisa parecida -, mas tem de sobra crítica social, filosofia e reflexões diversas. Sobre a mentira, por exemplo, o sobrinho diz: "A mentira é um vasto e longo capote que serve para esconder a preguiça, o erro e toda a qualidade de traficância." Diz ainda que ela "(...) se esconde por detrás dos reposteiros de todas as secretarias de Estado, dentro da manga do frade, (...) nos postiços da moça casquilha, (...) nas declarações dos candidatos às deputações, nos títulos de nobreza, (...) no epitáfio dos mortos." Nada do que é grotesco e ridículo na vida do país escapa ao olhar do sobrinho.
Apesar do humor ácido e da fina ironia que percorrem praticamente todas as páginas do livro, além de outras qualidades, A Carteira de Meu Tio não é lá assim uma obra tão agradável de se ler quanto deve ser aquela outra, mais idealizada, A Moreninha (que não li ainda). Mesmo que se ria um tanto durante a leitura ou que ela nos leve à reflexão e comparação inúmeras vezes, parece que o modo como o livro foi concebido, praticamente um longo discurso (e mesmo um inventário) sobre nossas eternas mazelas, acabe causando certa canseira no leitor. O que, logicamente, não retira sua importância dentro da história das letras brasileiras frente a outros escritos da mesma época. Pelo contrário, estabelece profundas relações entre literatura e sociedade.