Leituras que forjaram meu caráter: «Germinal», de Émile Zola
Esta resenha inaugura uma série que nomeei como Leituras que forjaram meu caráter. Minha intenção é indicar boas referências literárias ao amigo leitor, registrando também o contexto e as minhas impressões com relação a esta leitura e comentar quais os impactos sobre a minha personalidade elas acarretaram. Se você conhece a obra, comente sobre as suas impressões também. Se você não conhece, é uma excelente oportunidade para dialogar com as obras e autores relevantes. Boa leitura.
Há mais ou menos quinze anos atrás eu ainda estava cursando o pré-vestibular e durante uma aula de história, o saudoso professor Mauro nos comentava a respeito das obras que foram escritas sobre os eventos caracterizantes da Primeira Revolução Industrial. Entre algumas referências canônicas da literatura sobre o tema, uma capturou completamente a minha atenção. Eu contava então com pouco mais de vinte anos e muito sedento de originalidade e autenticidade. Uma fase muito fértil na construção dos meus padrões de pensamento e posicionamento existencial.
Frontalmente a minha atenção não estava propriamente na obra (o interesse por ela surgiu durante a própria leitura), mas em seu autor. Eu já ouvira à respeito dos grandes e prolíferos nomes da literatura francesa clássica como Victor Hugo (a resenha sobre «Os Miseráveis» já está no forno), mas jamais havia ouvido falar sobre Émile Zola e seu corajoso processo criativo. Zola aumentou o padrão da literatura francesa, perceberemos mais adiante.
O Autor
Há exatos 183 anos em um provavelmente úmido e ensolarado dois de abril parisiense de 1840, a Sra. Emilie Aubert e seu esposo, o Sr. François Zola¹, apresentavam à família o seu filho recém nascido: Émile-Edouard-Charles-Antoine Zola!
Zola se muda aos três anos (em 1843) com a família para Aix-en-Provence ao sul da França, onde acaba por conhecer Paul Cézanne². Em 1847 falece o Sr. Fançois, fato que implicou a família em dificuldades financeiras os levando a retornar à Paris. Paul e Émile se tornaram bons amigos, tanto que ele os acompanhou nesta mudança com a finalidade de ingressar na carreira artística.
Da época dessa mudança, o pequeno Zola já escrevia e manifestava interesse em se tornar escritor. Seus primeiros escritos foram em estilo romântico, provavelmente suas referências eram quase todas de escritores românticos que o precederam.
O jovem escritor arregaçou as mangas e foi arranjar emprego como balconista em uma empresa de transporte marítimo em troca de um salário mínimo, ao mesmo tempo que se dedicava a se promover como escritor. Em determinado momento conseguiu um emprego no departamento de vendas da editora Hachette, ocasião que o levou a escrever resenhas literárias e de arte para diversos periódicos. Além disso, dedicou-se em artigos sobre política, literatura e arte. Tornou-se conhecido por ser um crítico mordaz nessas áreas.
Em 1865 publica um romance autobiográfico chamado «La Confession de Claude», conseguindo atrair a atenção do público e da polícia. Por esses idos fez muitos contatos, destacando-se Claude Manet³, Camile Pisarro⁴ e Gustave Flaubert⁵. Em 1867 consegue emplacar seu primeiro romance bem sucedido, já inaugurando o naturalismo como corrente literária. A partir desse momento, agarra-se à realidade na elaboração de suas obras.
O autor desenvolveu uma evolução genealógica dos Rougon-Macquart ao longo de cinco gerações, onde temos para além de mil personagens participando de invejas e intrigas envoltos em suas próprias ambições, resultando em uma demonstração de precisão histórica e dramaticidade. A obra «Germinal» de 1885 constitui o 13º volume desta série, objeto desta resenha que desenvolveremos adiante.
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O Contexto
Na França, a publicação de «Germinal» em 1885 ocorreu em um contexto político e social complicado e com muitas mudanças. A Revolução Industrial continua, trazendo avanços econômicos e tecnológicos, mas também trouxe desigualdades sociais e condições de trabalho precárias para muitas pessoas.
A derrota na Guerra Franco-Prussiana em 1870 acabou com o Segundo Império Francês (1852-1870), liderado por Napoleão III. Em setembro de 1870, foi proclamada a Terceira República Francesa. A França passou por várias crises políticas e sociais durante esse período (1870–1940), especialmente em seu início, sendo marcada por instabilidades, com a luta entre republicanos e monarquistas e a criação de várias facções políticas.
Os trabalhadores enfrentavam condições impossíveis, incluindo jornadas absurdas, salário de fome, total ausência de leis trabalhistas e a vil exploração da burguesia. Não havia condição de vida nos bairros operários, as habitações eram absolutamente insalubres e nenhum acesso a qualquer tipo de serviço básico.
Essa situação ascendeu o fogo de um caldeirão de descontentamento social originando consequentemente a organização de movimentos operários e sindicais e promoção de greves e protestos em busca de melhores condições de trabalho e direitos trabalhistas.
Dentro desse contexto, «Germinal» se tornou relevante, uma vez que a obra aborda diretamente as questões sociais descritas acima, revelando as injustiças da sociedade e repercutindo as tensões políticas e sociais da época. Esse romance promoveu uma perspectiva contundente sobre a situação dos trabalhadores e contribuiu para fomentar a conscientização e o debate sobre essas questões sociais e políticas na França do século XIX. Ainda hoje nesses tempos de capitalismo tardio nestes tristes trópicos é possível tirar reflexões valorosas e inspiração revolucionária desta obra.
A Obra
Como meu objetivo não é fornecer spoiler sobre o enredo, vou me limitar a comentá-lo brevemente, e depois passarei as considerações que julgo importantes no sentido de recomendação para você leitor mergulhar nessa obra. Se ainda assim você quiser saber o enredo pormenorizado, você pode dar uma olhada no verbete «Germinal» da Wikipédia.
O romance descreve a vida impossível dos mineiros de carvão durante a Revolução Industrial. O protagonista, Étienne Lantier, é um jovem desempregado que chega a uma região mineradora em busca de trabalho e abrigo. Junta-se a uma comunidade de mineiros e testemunha as terríveis condições de trabalho, exploração e miséria enfrentadas por eles e suas famílias. Étienne se envolve em movimentos grevistas e lutas pelos direitos dos trabalhadores, porém a resistência dos patrões e a opressão sistêmica resultam em conflitos violentos e cruéis. O romance retrata as questões sociais, a luta de classes e os dramas humanos atravessados pelos personagens, oferecendo uma visão visceral e realista da condição humana diante das adversidades da época.
O nome deste romance se refere ao primeiro mês da primavera, de acordo com o calendário da Revolução Francesa, de modo que o autor faz uma metáfora associando as sementes das novas plantas ao florescer da transformação social. A passagem da potência de uma semente ao ato para o qual está destinada.
Pertencente à escola naturalista, a obra em questão possui características marcantes desse estilo. Esse movimento é marcado por uma radicalização do realismo, expressa através da oposição aos ideais românticos, abordagem mecanicista do ser humano e pela premente influência das ciências na literatura. Abaixo, eu listo alguns dos aspectos presentes no texto que me foram marcantes.
Determinismo e influência do ambiente: Há ênfase sobre impacto do ambiente e das condições sociais sobre o comportamento e o destino dos personagens. Eles são transformados por sua condição de mineiros em uma mina de carvão, denunciando a exploração e miséria enfrentadas pela classe trabalhadora durante a Revolução Industrial.
Observação científica: Nota-se a abordagem mais objetiva e científica no desenho da realidade. Zola fez extensas pesquisas sobre as condições de trabalho nas minas de carvão (incluindo ir morar e trabalhar na mina para experimentar essa realidade na própria pele) e usou esse conhecimento para descrever minuciosamente a vida dessas pessoas e suas dificuldades.
Retrato da miséria humana: Há o destaque das dificuldades e miséria enfrentadas pelas classes sociais desfavorecidas. O autor apresenta com cores vivas as pesadas condições de vida e trabalho dos mineiros, expondo sua exploração e sofrimento.
Hereditariedade e meio ambiente: Os naturalistas acreditavam que a hereditariedade e o meio ambiente desempenhavam um papel importante na formação da personalidade e do caráter dos indivíduos. Isso é evidente em «Germinal» através da caracterização dos personagens e das suas ações moldadas pelas condições em que vivem.
Personagens complexos: Os protagonistas são sempre retratados de forma complexa, com virtudes e falhas. Os personagens principais, como Étienne Lantier, apresentam características humanas realistas, tornando-os mais próximos e verossímeis.
Crítica social: O naturalismo frequentemente aborda questões sociais e políticas, buscando chamar a atenção para as injustiças e desigualdades da sociedade. «Germinal» critica as condições de trabalho desumanas e a exploração dos trabalhadores pelas classes dominantes.
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O leitor
Como eu havia citado no início desta resenha, a leitura me veio em mãos em um momento decisivo sobre meu posicionamento no mundo, enquanto pessoa. Eu estava preocupado com o tipo de pessoa eu deveria ser, eu queria ser. Desde bem jovem, eu já sentia uma forte inclinação para me indignar com as condições sociais, mas até o momento, não havia «encontrado sistema» para estes sentimentos. À partir da leitura de «Germinal» eu compreendi a posição política que eu queria adotar para a minha vida. Essa leitura foi determinante para que eu me posicionasse ao lado da classe trabalhadora, e anos mais tarde me sentir realmente incluído nessa classe.
Entre outras referências, ao longo da minha vida adulta, sempre que eu começava a sentir algum tipo de simpatia pela classe dominante e projetava meus desejos em ser como eles, me lembrava da origem de tantas riquezas edificadas sobre a miséria de tantos. Entre os exemplos reais que a vida me fez conhecer, e os que brilhantemente foram retratados por escritores como Zola, Hugo, Dostoievsky, Tolstói, etc, nunca me esqueço dos sofrimentos das minas de carvão retratadas em «Germinal».
O processo criativo de Zola e do naturalismo é embebido em coragem, e descobrir que o autor comungou, viveu e trabalhou ao lado dos mineiros para poder escrever o livro me fez admirar ainda mais a obra e seu autor.