O jogo da amarelinha - Julio Cortazar
Leitura um tanto difícil; melhor conhecer Cortazar através de seus contos, alguns também insólitos, como as histórias desse volume
Julio Cortazar - O jogo da amarelinha, SP, Companhia das Letras, 2019
Presente em várias listas dos melhores romances do século XX, em que invariavelmente também se encontra o Ulysses (1922), de James Joyce, com quem o livro de Julio Cortazar (1914-1984) dialoga a sua maneira, O Jogo da Amarelinha (1963) tem leitura difícil mas um tanto menos complexa do que a do volume do escritor irlandês, embora seja ousado em sua estrutura e narrativa como é aquele. Cansado de ler e escrever romances tradicionais, como o próprio Cortazar confessa numa das várias cartas que escreveu a editores, amigos e alguns leitores (elas estão presentes nessa edição da Companhia das Letras) ele decidiu escrever, partir então, no final dos anos 1950, para um “contrarromance” ou anti-romance.
Cortazar escreve ao destinatário de sua carta de 3 de junho de 1963, Jean Bernabé: “Espero que as inovações “técnicas” do romance não o incomodem; o senhor não vai demorar em adivinhar (...) que esses aparentes caprichos têm por objetivo exasperar o leitor e transformá-lo numa espécie de frère ennemi, um cúmplice, um colaborador da obra.” Uma dessas inovações era que os capítulos podiam ser lidos fora da ordem sequencial, ainda que na primeira página do livro haja um guia para a leitura, um tabuleiro, que se inicia no capítulo 73 e termina no 131, caracterizando assim o volume como um “jogo de amarelinha”, onde em vez de pular casas do desenho riscado no chão para a brincadeira, capítulos é que vão ser pulados.
Quer dizer, Cortazar estava delegando ao leitor a capacidade de também “construir” o romance, como destacou a FSP na sua famosa lista de 2006 dos cem melhores romances do século XX, onde especialistas brasileiros em literatura colocaram seu romance no 41º. lugar (Ulysses ficou em 1º.). Dividido em três partes, uma delas passada em Paris, Do Lado de Lá, outra em Buenos Aires, Do Lado de Cá, e uma terceira, De Outros Lados, Capítulos Prescindíveis (que o leitor pode escolher ler ou não pois não são indispensáveis para o “entendimento” do jogo), o volume é exatamente um jogo literário que levou 4 anos para ser escrito – ou montado, talvez ficasse bem melhor dizer assim – em que o que parece importar mais é a estrutura da obra do que propriamente a história que ela nos conta.
O volume narra em 156 capítulos a história não convencional, caótica, surrealista mesmo, de um intelectual argentino exilado em Paris nos anos 1950, Horacio Oliveira, em meio a muitas audições de discos de jazz (especialmente swing) e blues e música erudita, bebida, tabaco e muita conversa sobre, além de musica, filosofia, cinema, literatura, arquitetura et cetera. De certo modo Oliveira busca reencontrar Maga (ou Lucía), uma uruguaia misteriosa, sua ex-amante e musa, que ele chega a ver em outra mulher depois de seu retorno a Buenos Aires, Talita, mulher de outro personagem argentino, Traveler (viajante). O livro, quer dizer, a história de Oliveira, tem dois finais diferentes ou parece ter, conforme a sequência de leituras que se faça, porque o terreno da amarelinha de Cortazar a se pisar não é lá nada muito firme, então o leitor pode ficar mais próximo do Inferno do que do Céu nesse jogo.
Assim como em Ulysses foi necessário o livro do tradutor Caetano W. Galindo, Sim, Eu Digo Sim: Um visita guiada ao Ulysses de James Joyce (Companhia das Letras, 2016), para entender alguma coisa daquele calhamaço, aqui também foram úteis – e sobretudo necessárias – as próprias cartas de Cortazar presentes na edição, A história de O Jogo da Amarelinha nas cartas de Julio Cortazar, assim como os textos de Haroldo de Campos, O jogo de amarelinha, A atualidade de O Jogo da Amarelinha, de Julio Ortega e O trompete de Deyá, de Mario Vargas Llosa. Para Campos, Cortazar está para a literatura hispano-americana assim como Guimarães Rosa está para a literatura em língua portuguesa. Para Llosa, "Nenhum outro escritor deu ao jogo a mesma dignidade literária. A obra do autor argentino abriu portas inéditas." Ainda que tenha certa poesia, palavras e frases surpreendentes, situações inusitadas e outras qualidades, para mim ela deu muito trabalho: foi um mês de leitura nem sempre agradável, porque o livro é sobretudo cerebral.
De todo modo, há um capítulo muito saboroso e até mesmo cômico, o 23º., a melhor coisa que encontrei no livro. É narrado de modo tradicional e trata do encontro, em uma noite chuvosa em Paris, entre Oliveira e uma pianista clássica, Berthe Trépat, bem mais velha do que ele. Para fugir da chuva e sem nada a fazer ele entra numa sala de concertos quase vazia e lá encontra essa mulher ridícula, frustrada e petulante, que enxerga numa sala com pouquíssimos ouvintes, mais de quatrocentas pessoas a assisti-la et cetera. Eles têm uma longa conversa (curiosíssima, por conta de Trépat) durante a caminhada de volta para o apartamento dela e ao final do encontro acusa Oliveira de assédio sexual, sem que nada tivesse havido entre os dois.
Bem, para finalizar, o melhor de Cortazar que li até agora foi mesmo a novela O Perseguidor (Cosac Naify, 2012) e vários contos espalhados pelos volumes A Autoestrada do Sul & outras histórias (L&PM, 2013), Fora de Hora (Nova Fronteira, 1985) e As Armas Secretas (José Olympio, 2001). O Jogo da Amarelinha foi um em que certamente Cortazar se divertiu muito mais ao escrever/montar o livro do que muitos leitores ao lê-lo. Faz parte (da literatura), e isso aqui também não é uma resenha, apenas alguns comentários pós leitura...