A Doida (Contos de Aprendiz) - de Carlos Drummond de Andrade.
Com uma sensibilidade tocante, Carlos Drummond de Andrade conta, em poucas palavras, uma história simples - história que, de tão simples, toda pessoa se acredita capaz de escrevê-la -, e o faz com a decência, com o carinho, com a paixão, com o sentimento humano que ele, do Brasil um dos poetas mais famosos, e respeitados, e amados, e queridos, possuía. É impressionante a simplicidade do relato, e a sua sofisticação, que se resume à simplicidade.
Apresenta o narrador a doida, a história dela, talvez a real, com as inconsistências, os diz-que-diz, os mexericos que o povo conta; a verdadeira história, a real, perdida no tempo, é de todos desconhecida, ou conhecida de poucos - e os poucos que a conhecem, discretos, acerca dela, em respeito às personagens nela envolvidas, em especial, e principalmente, à que inspirou ao escritor a narrativa, preferem se silenciar.
Quem é a doida?! Dela o narrador aos leitores não dá o nome. Sequer lhes diz o nome da cidade onde ela reside. Diz ele, apenas, que ela mora num chalé, situado no centro de um jardim judiado, localizado numa ladeira, próximo de um córrego e de um barranco, numa rua de terra juncada de capim onde pastam burros. O jardim está há um bom tempo sem ver enxada, garfo, rastelo, tesouras de podar, cortador de gramas, pás, e outras ferramentas de jardinagem; nele misturam-se, confundem-se, num emaranhado inextrincável, o melão-de-são-caetano, as violetas, as roseiras, o capim, crescido, as ervas daninhas.
No decorrer da narrativa, descreve o narrador o chalé, e o seu interior; e fala de um de três garotos, o de onze anos, que tinham o hábito de atormentar a doida ao disparar-lhe na moradia pedras. Atreveu-se o garoto de onze anos a abrir o portão que dava acesso ao reino misterioso e assustador da doida, surpreendentemente desguarnecido, e por ele avançar, a acompanharem-lhe os passos os seus dois amigos, até onde a doida, valetudinária, acamada, encontrava-se. Estou a me antecipar à narrativa, a tratar das derradeiras palavras do cativante, simples, e impressionante, impressionante em sua simplicidade, história que Carlos Drummond de Andrade conta, e conta com mão de mestre.
Há quatro décadas a protagonista deste relato enamorou-se de um fazendeiro, que, não diz o narrador a razão, com ela se desentendeu na noite de núpcias; e foi tão séria a rusga que ele a empurrou escadaria abaixo, quebrando-lhe ossos. É esta história uma que o povo conta. Esta, a origem da loucura da moça, a doida do conto?! E é tal história uma reprodução de um episódio dramático, que por um milagre não se encerrou com uma tragédia - e se tal tivesse se sucedido, o poeta não teria para nos contar a bela história que nos contou - da biografia da doida cujo nome, repito, o narrador aos leitores não dá a conhecer?! Talvez seja tal história um ponto que ao conto quem o contou adicionou por conta própria. E há outra história, que o povo conta, que dá a conhecer a origem da insanidade da moça, a agora doida: de sua casa o pai a expulsou ao suspeitar que tinha ela tendência parricida. É este um ponto que ao conto acrescentou quem o contou?! Quem sabe?! Sabe-se apenas que no chalé vive, há quarenta anos, trancafiada, uma doida, só, isolada, mulher que, no transcurso dos anos, que formaram décadas, contou com a generosidade de muita gente, gente que, mesmo ajudando-a, em benefício dela pouco pôde fazer, afinal não sabia tal gente como lidar com uma doida com a qual adquiriram o hábito, não de com ela conviver, pois, afinal, ela,trancada na própria casa, vivia longe do convívio com seres da sua espécie, mas de saber-lhe da existência, ela uma figura da paisagem local da qual não poderia se retirar sem que, descaracterizando-a, fizesse-a irreconhecível.
E chegamos à cena derradeira da história da doida.
Inadvertidamente, quase contei, linhas acima, e com palavras inadequadas, o encerramento da história, história singela, tocante, encantadora. Detive-me a tempo de evitar o inevitável. Agora sendo o momento para contar o ato que fecha o conto, eu o conto: dois dos três garotos, os dois mais velhos, arremessaram pedras contra o chalé em cujo coração vivia a doida, e o mais novo, o de onze anos, não; este, decidiu, sabe-se lá porque cargas-d'água, adentrar os domínios do reino da velha doida. E adentrou-o. E com facilidade inimaginável envereda-lhe pelos espaços selvagens, surpreendendo-se com a facilidade com que se deparava. Passa pelo enquadramento da porta que dá acesso ao interior do chalé, e vai, após um amontoado de móveis, naquele tugúrio perdido na semi-escuridão reinante, encontrar a pequena, minúscula velha, estendida na cama - tão pequenina é a velha, tão demasiadamente mirrada, que é praticamente invisível aos olhos. E ao garoto a velha suplica, ciciando uma palavra incompreensível, qualquer coisa. Água?! Remédio?! O garoto não sabe. Em sua indecisão, persuadindo-se de que nada pode fazer em favor da idosa, decide ter em suas mãos as mão dela, mãos mumificadas, mãos que, ele entendeu, não eram as de uma doida, mas as de uma senhora de cabelos brancos que não queria ficar só, não naquele momento...