Anotações de um jovem médico - Mikhail Bulgakov
Mikhail Bulgakov - Anotações de um jovem médico, SP, Editora 34, 2020
Lê-se rapidamente a obra (levei apenas algumas horas em 3 dias para finalizar o livro) porque as histórias contadas por Mikhail Bulgakov (1891-1940) além de interessantes em sua maioria têm poucas páginas e o volume da Editora 34 não fez economia no tamanho das letras. As histórias têm certo cunho autobiográfico porque o autor foi médico antes de se dedicar totalmente à literatura e produzir sua obra máxima, O Mestre e Margarida, escrita entre 1928 e 1940. Que o tornou um dos maiores autores russos do século XX. Pelas narrativas de Anotações já é possível perceber seu grande talento de contador de histórias.
As de Anotações se passam numa época conturbada da história russa, estava em curso a revolução de 1917, mas foram publicadas mesmo em 1925-6. Elas falam acerca das atribulações de um jovem ucraniano recém-formado em medicina que pensava em clinicar na capital mas que acabou sendo designado para trabalhar num pequeno povoado distante 250 quilômetros de Moscou. Ali não havia energia elétrica, trabalhava-se à luz de lampiões, com poucos recursos: ele podia contar apenas com duas parteiras e um enfermeiro mais seus conhecimentos teóricos, muito pouco práticos para os casos que teve de atender logo de início. O tédio do vilarejo foi rapidamente substituído por uma porção de ocorrências médicas que acabaram deixando-o exausto. Num único dia teve de atender mais de cem doentes.
Logo nos primeiros tempos o jovem médico enfrentou casos de pacientes com malária, sífilis (uma praga, pelos relatos) e outras infecções, teve de fazer um parto complicadíssimo, uma amputação de perna numa garota, extrair um dente com raízes profundas etc. As situações se apresentavam com tintas tão dramáticas que o desespero e a insegurança do novato acabavam quase virando comédia. Mas com ajuda de alguns livros, da sorte, de seu instinto, da experiência de uma das parteiras e alguma improvisação, felizmente na imensa maioria dos casos a coisa terminava bem. Nós também ficamos aliviados com os desfechos porque Bulgakov conseguiu imprimir certo suspense nessas narrativas, deixar-nos apreensivos com a gravidade dos casos, com sua inexperiência e ainda com um bocado de sangue derramado nas cirurgias.
As histórias tragicômicas são sete e compõem propriamente as Anotações do título. São elas: A toalha com um galo; A estreia obstétrica; Garganta de aço; Tempestade de neve; A praga das trevas; O olho desaparecido; Exantema estrelado. Depois temos duas histórias mais longas, Morfina e Eu Matei, ambas com toques acentuadamente dramáticos, especialmente porque Bulgakov teve de lutar ele mesmo contra seu vício em morfina, caso da primeira história, enquanto a segunda envolve acontecimentos políticos. O volume traz ainda o prefácio da própria tradutora, Érika Batista, e se encerra com o posfácio do crítico russo Efim Etkind, que analisa as peculiaridades da prosa de Bulgakov e suas relações com o meio literário soviético.
Anotações de Um Jovem Médico demorou bastante para ser publicado no Brasil (minha edição é de 2020). Mas antes, mais de 5 anos passados, eu já conhecia um tanto de seu conteúdo por ter visto alguns episódios de uma série inglesa para a televisão, produzida em 2012, com o título homônimo da publicação original, em que o jovem médico era interpretado por Daniel Radcliffe. Não apreciei tanto assim então, nem quis ver toda a série porque me pareceu que transformaram tudo numa comédia negra, com verdadeiros banhos de sangue, muito, muito além dos narrados por Bulgakov. Mas penso que poderia tentar rever os primeiros episódios agora, depois da leitura, encontrar os pontos comuns entre o livro e sua versão televisiva. Só faltam vontade e tempo...