RESENHA CRÍTICA "A CASA DOS COELHOS"

Literatura Hispano Americana

A CASA DOS COELHOS

Na Argentina dos anos 1970, uma menina é arrastada para a vida clandestina pela mãe, militante dos Montoneros, grupo de resistência à ditadura. Elas vivem escondidas, se afastam da vida que conheciam, e são obrigadas a conviver com outros militantes, entre segredos e o medo constante.

Alcoba, Laura

A casa dos coelhos 1ªED.(2022) 128 pp.

Rio de janeiro: Editora Paris de Histórias, 2022

Tradutora: Natália Bravo

“ “A partir de agora, viveremos na clandestinidade”, foi exatamente isso o que ela disse.”

La casa de los conejos, The rabbit house ou, na tradução brasileira, A casa dos coelhos nos leva ao período da ditadura argentina em 1976. Foi um momento de forte represália e violência com a população civil. E, assim como no Brasil, houve abuso de poder extremo por parte dos militares (se é que é possível abusar mais de seus poderes do que a instauração de uma ditadura militar). Pessoas foram mortas, torturadas e muitos ainda estão desaparecidos, algo bem semelhante ao Brasil. Acredita-se que mais de 30 mil pessoas foram mortas durante a última ditadura militar argentina. O livro, narrado em primeira pessoa, descreve sob o olhar infantil de Laura, a vivência com os militantes Montoneros, movimento no qual seus pais faziam parte, e a vida na clandestinidade.

“Montoneros foi uma organização político-militar argentina e guerrilha urbana de extrema-esquerda, cujo propósito era o estabelecimento de um estado socialista[1] na Argentina. Seus objetivos foram a desestabilização da ditadura militar governante, a autodenominada Revolución Argentina ("Revolução Argentina") (Onganía, Levingston, Lanusse / 1966 - 1973); o retorno ao poder do Juan Domingo Perón, e a realização de eleições democráticas.[2]Foi eficaz entre 1970 e 1979 (sendo que seu período de máximo poder se estendeu até 1976). Foi útil para pressionar e desestabilizar a ditadura militar que governava o país. Com o tempo, Montoneros passou a perder o apoio da população. Seu fim tornou-se claro com o chamado Processo de Reorganização Nacional, iniciado após a derrocada de Isabelita Perón, viúva de Perón, da presidência. Devido às estratégias de terrorismo de Estado e investigações ilegais, o grupo foi sistematicamente perseguido pelo regime militar de Jorge Videla, tendo hoje muitos de seus ex-integrantes nas listas de Desaparecidos durante a ditadura argentina.”

Carranza, Octavio, Radiografía de los Populismos Argentinos, Buenos Aires: Liber Liberat, 2007, ISBN 978-987-05-3074-9

Parte da infância de Laura foi cruelmente arrancada. Na visão dos adultos Laura precisava amadurecer em certos pensamentos para entender o que se passava entre os montoneros e o resto do mundo; renunciar sonhos, despreocupações de qualquer criança de sua idade, e seu olhar inocente, para de fato encarar a dura realidade que o país enfrentava naquele momento. Ou seja, Laura já entendia que não era uma criança comum. Não falava de sua vida com ninguém, dificilmente ia à escola, para não sofrer dolorosas consequências e arriscar entregar os montoneros aos militares. Alguns detalhes do dia a dia de Laura só reforçam o seu amadurecimento precoce e forçado. Ela mesma afirma que é já “grande o suficiente” para passar por certas situações e pensar como um adulto, mas pouco tempo depois ela não consegue lidar com o que se passa.

“Mas comigo é muito diferente. Sou grande. Tenho só 7 anos, mas todos me dizem que me expresso e raciocino como gente grande”

Em um certo momento do livro, há um choque entre dois indivíduos, que se distanciam pela idade, corpo e intelectualidade. Sua tia Sofia tem algum problema mental que a faz agir como criança; querendo se sentir útil, e pertencente ao seu corpo já formado de mulher, mas sem êxito, pois sua mente é limitada. Enquanto Laura, com apenas 7 anos, leva uma vida desproporcional a sua idade e corpo, carregando o peso de grandes responsabilidades que não dividiria com ninguém. A autora reforça em vários trechos o quão cansativo é para ela toda essa pressão para manter sigilo sobre a família e os montonero, e quão normal isso vai sendo, ao se acostumar com a mãe sempre longe 3 ou 4 meses e o pai preso, tudo pela resistência ao governo ditatorial. As primeiras cenas da rotina conturbada da pequena Laura, mostram que seus pais não a acompanham tanto, como deveriam, pelo fato de estarem muito mais ocupados com as tarefas de militância dos montoneros, na cidade de La Plata. E quando retornavam, depois de muito tempo longe, deixavam que ela escolhesse a boneca que quisesse, como se isso amenizasse a situação, como se Laura não entendesse o que estava acontecendo e por isso dar-lhe uma boneca seria suficiente para mantê-la calma.

“Naquela vez, meus avós, para eu não ficar angustiada, tiveram a ideia de me dizer que meus pais tinham partido para Córdoba a trabalho, mas mesmo assim percebi que eles estavam presos e que tudo aquilo não tinha nada a ver com o trabalho deles, mas sim com uma temporada que eles haviam passado em cuba, há muito tempo atrás. No fim das contas,na minha cabeça essa primeira temporada ficou ligada à sereia de plástico e à cidade de Córdoba…”

Laura passava a maior parte do tempo com os avós paternos e com os tios, que diferente dela e dos pais, não viviam na clandestinidade, às espreitas do governo ditatorial, não precisavam ter identidades falsas para sobreviver. Chega a ser algo belo, lutar por um ideal, defender o seu país da opressão e da censura. Mas qual é o limite disso tudo? Seria viável uma família estabelecer limites a uma luta em prol da liberdade, num momento em que o país é sustentado por forças armadas, tendo em vista o abalo que todo o processo longo e árduo dessa resistência causa no psicológico do seu filho? De fato, a autora faz com que o leitor questione, ao se mostrar em alguns trechos cansada de “não ser criança”, ou “ser criança demais” (quando comete pequenas falhas, sem querer, é claro, que põe em risco a vida dos montonero e logo vem um adulto para tirar satisfação e brigar com Laura). Isso gera um conflito em Laura, a fazendo duvidar da sua própria identidade e da sua própria essência. Um detalhe minucioso e que não se ouve falar é a questão de como a cor vermelha aparece no livro. Há pelo menos 11 episódios em que a autora faz questão de mencionar essa cor intensa, a começar pelo telhado da casa, depois o antigo carro dos pais de laura; os desenhos no ônibus; os sinais vermelhos no novo bairro, onde a casa está localizada; os cabelos de sua mãe; seu carrinho de brinquedo; os olhos dos coelhos; o cobertor usado para se esconder dentro do carro e por fim o papel usado nos jornais Evita Montonera. O que se percebe é que ao relembrar esses momentos passados durante um período histórico de horror, Laura Alcoba vai fazendo um caminho, nos preparando para os instantes finais do romance. Tal cor está simbolicamente ligada à raiva, paixão, fúria, ira, desejo, excitação, energia, velocidade, força, poder, calor, amor, agressão, perigo, fogo, sangue, guerra, violência. Mas no caso da “casa dos coelhos”, devido ao próprio contexto histórico em que ela está inserida, a ligação fica clara com esses seis últimos. O vermelho que ficou marcado, como macha, na história, na casa, em laura e em todos aqueles que vivenciaram a brutalidade e a violência que foi a ditadura argentina.

Amanda Queiroz
Enviado por Amanda Queiroz em 23/05/2023
Reeditado em 10/09/2023
Código do texto: T7795365
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