TUDO É ÁGUA, SOMOS RIO: um comentário à obra "Tudo é Rio" de Carla Madeira
Concluída a leitura de “tudo é Rio”, obra inaugural da escritora mineira Carla Madeira, passados alguns dias de decantação, sinto-me tomado de uma vontade de tentar (e ousar) rabiscar a seu respeito alguns comentários e considerações, de (extra)vazar um pouco do que a leitura dessa fascinante obra me provocou. Já do título vem à memória uma série de metáforas que tomam a água como elemento de representação da transitoriedade e mesmo da inconstância da vida. Recordo-me especialmente de uma das mais célebres e famosas dessas formulações, a do filósofo da Antiguidade Heráclito, para quem um mesmo homem não se banha duas vezes no mesmo rio. Tudo se altera, se transforma, permanentemente. Modernamente, falamos até de tempos e sentimentos líquidos, além outras centenas de imagens, expressões e provérbios que recorrem à água para dar forma a ideias ou expressar, talvez e quem sabe, exatamente a ausência de uma forma.
Mas e se fôssemos também nós água? E não falo aqui apenas da dimensão da matéria, da substância química que nos compõe em nossa própria consistência física, como já de há muito revelou-nos a ciência. A água, muito mais que um ingrediente essencial que dá forma e vida ao mundo é um elemento de significado e sentido quase místico, mágico, presente em toda a experiência humana. Da origem da vida nos oceanos à gestação no útero, somos todos, desde sempre, envolvidos por ela. A água inunda a superfície do planeta e também fecunda nossa imaginação. Tudo nos remete ela. Se nossos corpos são predominantemente água, o que dizer, então de nossos sentimentos? Para muito além da água oculta por debaixo da superfície aparentemente sólida da pele, correndo líquida como em rios por nossas veias, atravessando nossa carne, pulsando em nossos músculos e corações, acumulada em nossas bocas e entranhas, em “Tudo é Rio” estamos a falar da água como verdadeira propriedade do espírito, como essência de nossas próprias almas, como condutora dos sentimentos e expressão de nossos desejos e paixões que fluem como rios, muitas vezes incontroláveis. Sim, porque eles, como a água, não possuem forma fixa, tomam forma em seu curso e correm em permanente movimento. E se somos o que sentimos, logo também somos, em alguma medida, rio. Essa parece ser, afinal, na opinião desse reles leitor, a proposta e o olhar de “Tudo é rio”, uma chave de leitura pela qual a obra pode ser compreendida e lida. E não parecerá, espero, loucura, o que aqui se afirma. É como se a fluidez e liquidez fossem como que características inerentes de nossa própria existência e de nosso sentir.
O que esperar então ao nos lançarmos à travessia desse Rio de Carla Madeira? O livro nos convida a um mergulho nas profundezas dos sentimentos através da vida e da história de diferentes personagens apresentadas cada qual com um curso próprio, mas a desaguar uns nos outros. A narrativa atravessa e conduz a história e a trajetória das personagens como diferentes rios e afluentes, um mais caudaloso, outro mais tranquilo, outro agitado, mas, que fluem todos em uma mesma direção, sem um sentido definido. Isso porque aqui não lidamos apenas com as experiências e vivências particulares das diversas personagens (especialmente das personagens femininas, centrais na obra), mas com relações que se misturam como rios que se cortam e se atravessam. Para além de Dalva, Aurora, Lucy, Venâncio e tantos outros personagens, também os sentimentos são aqui são apresentados na forma líquida, como rios. Do amor ao desamor, do desejo à paixão, passando pelo ciúme, pela dor e tristeza, às águas tranquilas do perdão, tudo aqui flui, incontrolável e imprevisível. Tudo é Rio.
E assim o livro se inicia nos apresentando logo ao talvez mais profundo deles, o do amor, inclusive, como fonte que abastece e alimenta tantos outros afluentes. Começa por onde começam todos os amores, do encontro de águas que formam um rio, um rio que gradualmente toma forma, se adensa, avoluma: “um rio largo e farto, manso em seu fluxo, lavando tudo, fertilizando os dias, umedecendo o árido, enfrentando quedas, as curvas as tempestades, confiante de um dia ser mar. O amor, quando nasce forte, tem pressa de ser eterno. Nem se dá conta de que é carne úmida." Mas, o curso do amor, como da vida, é imprevisível, incontrolável e a promessa de um leito suave, de um correr manso, de um fluir calmo e tranquilo, logo esbarra em complicações do próprio amor, interrompido abruptamente por um evento imprevisto que perturba as águas. A mais pura e genuína forma de amor já pode chocar-se e esbarrar em algum sentimento alheio. Amor que esbarra em amor. O amor já nasce complicado. A correnteza do ciúme doentio de Venâncio, uma expressão deformada de amor e de afetos mal sentidos, explode numa tensão edípica com um encaminhamento trágico que marca o ponto central da obra que afeta o curso de Dalva. Paralelamente, com Lucy, temos ainda o rio caudaloso, voluptuoso e agitado do desejo, com sua força tempestuosa e suas águas indomáveis que arrastam tudo o que encontra pelo caminho. Amor que se mistura a sofrimento, rejeição que leva ao tormento, desejo que se transforma em paixão, desperta apetites, aguça vaidades. Sentimentos também são como rios, sempre desaguam em um outro e, de alguma forma, afetam o curso da história daqueles com quem nossas águas se misturam.
Mas a história não apenas flui, REFLUI evocando memórias, revolvendo águas passadas, buscando e escavando no lodo das profundezas ou conduzindo-nos rio acima até a nascente dos sentimentos que desembocam. Se, como o livro nos mostra, talvez não seja possível na vida resgatar a pureza dos sentimentos desaguados, podemos ao menos desbravar seu curso, revelar suas origens e chegar à fonte, onde quem sabe, encontraremos as mesmas águas limpas, puras e cristalinas, ainda longe dos agitos e das imprevisíveis curvas da vida.
Mas, tão logo começam a fluir, descobrimos como podem ser difíceis o curso das águas e os desenhos tortuosos dos rios. Nem sempre se corre pelo caminho mais fácil e tranquilo, afinal, nessa longa e imprevisível travessia, as águas, a despeito de sua consistência, suas propriedades e qualidades, também são direcionadas pelos caminhos possíveis e, de algum modo, determinadas pelos terrenos que atravessam, pelas contingências do relevo e pela composição do solo. Misturam-se à terra, arrastam sedimentos e partículas, carregam galhos, atravessam fendas e solos adversos, turvam-se, agitam-se, passam por redemoinhos e correntezas, lançam-se de alturas, desaguam-se em outras águas. Tudo, porém, segue fluindo, permanentemente e mesmo quando as águas encontram ou se chocam com um obstáculo, uma pedra, uma encosta, uma gruta, são obrigadas a refazer seu caminho, desviando-se, ou descobrir um novo curso por onde desaguar. Seguem fluindo até encontrar seu leito. Poucas imagens talvez traduzam tão bem a vida e os sentimentos como essa bela metáfora do Rio. Essa é uma das mais fascinantes experiências que a obra nos oferece. Esse olhar pela água. Como rios, também nossos sentimentos correm e fluem, às vezes calmos, às vezes revoltosos, enfrentam curvas, correntezas, atravessam áridos, chocam-se com obstáculos, vazam, escorrem, desaguam-se ou apenas se represam e se acumulam, até que inundam-se e transbordam. O livro é um verdadeiro manancial de metáforas e de ricas imagens.
É de fato encantador e fascinante a forma como a narrativa a todo tempo é cortada por belas imagens líquidas que abundam do texto, belíssimas “metáforas aquáticas” que dão realmente o tom e a ambientação da história. Carla mantem-se impressionantemente fiel e esses “olhos d’água”, encontrando a todo tempo maneiras elaboradas e criativas de traduzir e descrever, com perfeição, sentimento e sensações humanas a partir de construções líquidas: “Sensação de redemoinho, a ternura que pinga, o caldeirão que ferve a vida e engrossa o caldo mágico, as certezas que saem do xixi, o ódio afogado, a saudade represada, o medo que seca as águas, o chorar-se em poça, a tristeza que infiltra e a esperança que molha a carne, a felicidade que transborda.” Ou ainda, “a sede e o brilho que molha os olhos apaixonados, as águas boas de um beijo de amantes, os corpos afetados por ondas mágicas e seus litros derramados, sem falar no jorro de um momento de paz.”
Nessas poderosas expressões recolhidas do texto, vê-se um pouco da beleza e da potência da escrita de Carla Madeira. Aqui, nenhuma forma é sólida, porque tudo e todos, somos líquidos. Tudo é mesmo Rio. Mas, para além da beleza e poesia, se oculta um verdadeiro recurso sensível, estético e sobretudo, didático, pois, dito e explicado assim, não há sequer um sentimento que não entendamos e que não sejamos capazes de alcançar. Suas imagens nos ajudam a sentir, na carne. Mesmo os sentimentos mais conflituosos e turbulentos parecem-nos dessa forma, ao final, compreensíveis, ainda que não justificáveis. Assim é, afinal, o curso da vida, como o de um rio, que não permite nem mesmo ao mais puro sentimento, manter-se intacto em seu curso. Nem mesmo o amor escapa: “O amor não é incondicional coisa nenhuma, tem suas fragilidades de matéria orgânica. Estraga, esgarça, rasga, inflama, acaba. E como acaba. É feito gente, depende do que vive." É como se o livro nos oferecesse, pela água, uma oportunidade de aprendizado de experiências que, aliás, nos são todas familiares, ainda que nos causem espanto, perplexidade ou medo. Somos seres de água e de sentimentos. Essa é, afinal, a substância que nos compõe. Sangue, fluidos, lágrimas, somos todos, em diferentes graus, um pequeno manancial de emoções e sensações que inevitavelmente fluem, correm, transbordam, desaguam. Depararmo-nos com essa forma de compreensão dos sentimentos e da vida, nos traz ao fim um outro olhar. Todos somos arrastados pelas águas da vida e nenhum rio corre só. Não importa quão agitado seja o curso, todo rio encontra sua foz, lançando-se no oceano profundo e devolvendo suas águas ao mar. É um pouco esse o exercício que o livro nos propõe.
Entre os vai-e-vens das águas e as idas e vindas pelos muitos rios encruzilhados na história, somos como que arrastados por correntezas. Entender que “Tudo é Rio”, incerto e incontrolável, impõe-nos a aceitação da vida e certo grau de consciência de que somos frágeis, pequenos demais para domar as águas ou mesmo prever para onde correrão. Porém, não somos de tudo impotentes, podemos sim aprender a lidar com nossas próprias correntezas, suavizar as curvas dos desejos, a depurar nossos sentimentos a decantar tristezas e dores, a saber esperar com paciência pelo momento em que o rio recobrará, ou não, seu curso e poderemos enfim navegar por águas mais tranquilas. Nem sempre as coisas se acertam, nem sempre se corrige o curso de um rio, nem sempre se pode purificar suas águas, mas elas nunca perdem sua força. Novos rios, como caminhos, sempre podem surgir do (re)encontro das águas que se misturam e vão aos poucos (re)descobrindo seus caminhos, lavando e levando feridas e traumas abertos, refazendo seus cursos até o estuário... Um outro ser, um outro caminho, mas fluindo, sempre, pelo mesmo rio dos sentimentos humanos. É possível (e preciso) acreditar nos afetos autênticos, nos sentimentos genuínos, ainda que seu curso se nos desvie ou tomem caminhos que não desejávamos. A água sempre engendra alguma forma de vida. Assim é a história de Dalva e Venâncio, ao fim, devolvidos ao leito do rio que segue, enfim, calmo para alcançar o mar... claro, sem querer dar spoiler, até porque tem muita água para rolar... rs
Não, esse não é um comentário a um livro de geografia, de geologia ou um estudo sobre bacias hidrográficas. Aliás, muito mais que um comentário ou resenha, penso que esse é, na verdade, nada além de um convite à leitura desse livro surpreendente. Passaria muito mais tempo mergulhado nessa obra se ela, como todo e qualquer rio, não encontrasse também sua foz. Seja como for, fica aqui a indicação aos que gostam de um bom romance. Inclusive, por falar em indicação, aos amigos e leitores que quiserem me sugerir outros títulos e novas leituras como essa, agradeço, afinal, “Tudo é Rio” me deu uma baita sede.