Berlim: 1961 - Frederick Kempe
Guerra pra lá de fria... Do confronto entre Kennedy (Little Boy Blue) e Khruschov (Al Capone) resultou o Muro de Berlim. Como observou Kennedy em 13 de agosto de 1961, “um muro é bem melhor que uma guerra”. Ou menos pior, pensando melhor
Frederick Kempe - Berlim: 1961, SP, Companhia das Letras, 2013
Berlim: 1961 é volumoso (são cerca de 600 páginas), traz infindáveis notas e é repleto de datas, nomes, acontecimentos e referências a Moscou, Washington, Berlim, à Guerra Fria enfim. O termo foi criado pelo jornalista político americano Walter Lippmann (1889-1974), duas vezes premiado com o Pulitzer, e que acabou por caracterizar o período compreendido entre os anos de 1947 e 1991. Tempo marcado por grande tensão geopolítica entre americanos e soviéticos e que esquentou bastante em 1961. No centro da discórdia a capital alemã, dividida após o final da Segunda Guerra Mundial em Berlim Ocidental e Berlim Oriental, assim como a Alemanha. De um lado estava o presidente americano John F. Kennedy (1917-1963), do outro, o premiê russo Nikita Khruschov (1894-1971), que chamou Berlim de “o lugar mais perigoso do mundo”, conforme registra nesse livro o jornalista Frederick Kempe.
Lugar mais perigoso porque na Berlim dividida poderia ter início uma guerra nuclear entre as duas principais potências militares da época, caso certas reivindicações soviéticas não fossem atendidas. Os EUA temiam que os russos se apoderassem de Berlim Ocidental. Mas a prioridade de Moscou e da Alemanha Oriental no momento era conter rapidamente a debandada de trabalhadores (e cérebros) do Leste em direção a Berlim Ocidental, ao Ocidente enfim. Eles buscavam melhores condições de vida e liberdade, coisas que o socialismo não oferecia, muito pelo contrário. Não havia ninguém querendo fugir do Ocidente para os países da Cortina de Ferro, mas Moscou desejava manter e ampliar sua área de influência política no mundo e desse modo combater o capitalismo. Em agosto de 1961, em média, por dia, dois mil berlinenses orientais se refugiavam no lado ocidental. Um jornalista calculou que, naquele ritmo, em 1980, a população da Alemanha Oriental estaria extinta. Daí a urgência soviética para resolver a questão berlinense. Não houve guerra quente, claro, mas a tensão entre URSS e EUA cresceu enormemente e resultou no fechamento da Alemanha Oriental, representado pela construção do muro de Berlim em agosto de 1961.
O início de Berlim: 1961 é um pouco maçante, mas também traz algumas passagens interessantes e informações curiosas sobre os dois principais líderes mundiais de então. Também tem muita coisa sobre o presidente Eisenhower, antecessor de Kennedy, assim como sobre Stalin, Mao, De Gaulle, Churchill etc. Isso é a parte I do livro, intitulada Os Atores, em que somos apresentados aos dois principais protagonistas da Guerra Fria, Khruschov e Kennedy. Depois disso começa a parte II, convenientemente intitulada A Tempestade se Forma. Lemos sobre as infrutíferas tratativas soviéticas para um encontro entre o premiê russo e o presidente americano, que a princípio parecia aos soviéticos mais receptivo à questão do controle de Berlim do que Eisenhower, mas não. Diplomacia pra cá, diplomacia pra lá e nada se resolve, mas Kennedy se fortalece e os críticos e adversários de Khruschov dentro da própria URSS avaliam que o velho líder não está desempenhando seu papel político convenientemente. De um lado e de outro havia uns tantos loucos que pensavam loucamente que a solução seria desencadear um confronto militar entre as duas potências.
Também havia aqueles que viam nessa loucura motivo para anedotas. A Rússia (a URSS, melhor dizendo) podia ser uma potência militar, mas seus cidadãos não tinham suas necessidades básicas plenamente satisfeitas, porque o socialismo estava muito longe de ser um paraíso, como sabemos muito bem. O reconhecimento das deficiências soviéticas inspirou internamente uma sucessão de anedotas, como essas duas que transcrevo em seguida. A primeira anedota: “P. De que nacionalidade eram Adão e Eva? / R. Soviética. / P. Como é que você sabe? / R. Porque eles andavam nus, só tinham uma maçã para comer e, mesmo assim, estavam no paraíso.” A segunda anedota, além do premiê russo envolvia o presidente americano e também o francês: “John Kennedy procura Deus e pede: ‘Dizei-me, Senhor, quantos anos meu povo tem de esperar para ser feliz?’ / ‘Cinquenta anos’, é a resposta. Kennedy chora e vai embora. / Charles de Gaulle procura Deus e pede: ‘Dizei-me, Senhor, quantos anos meu povo tem de esperar para ser feliz?’ / ‘Cem anos’, é a resposta. De Gaulle chora e vai embora. / Khruschov procura Deus e pede: ‘Dizei-me, Senhor, quantos anos meu povo tem de esperar para ser feliz?’ Deus chora e vai embora.”
Junho de 1961, Viena: finalmente iria ocorrer, na capital austríaca, o primeiro encontro entre Kennedy e Khruschov, precisamente nos dias 3 e 4, reunião que poderia determinar o futuro de Berlim. Mas antes, entre 15 e 20 de abril do mesmo ano, uma tentativa mal planejada por militares americanos e executada por exilados cubanos, de invasão da Baía dos Porcos, no sul de Cuba, país aliado à União Soviética, terminara com a vitória das tropas de Fidel Castro. Os EUA negavam sua participação, mas Moscou sabia que isso não era verdade. Kennedy partia para o encontro com o líder russo carregando esse fracasso nas costas, menos de seis meses depois de sua posse como presidente dos EUA. E sofria também com dores variadas pelo corpo, razão por que tomava uma infinidade de medicamentos. Seria, como se disse na época no Ocidente, o encontro entre Little Boy Blue (Kennedy) e Al Capone (Khruschov) e, claro, as coisas não correram como os russos esperavam, os EUA concordando com as reivindicações do Leste. A ameaça de uma guerra nuclear estava no ar, como se pode ler nas declarações dos envolvidos:
“Os Estados Unidos não parecem dispostos a normalizar a situação no lugar mais perigoso do mundo. A União Soviética quer executar uma operação nesse ponto doloroso — para eliminar esse espinho, essa úlcera [...]. Palavras do premiê Nikita Khruschov ao presidente John F. Kennedy na Cúpula de Viena, 4 de junho de 1961. O presidente americano depois afirmou ao repórter Hugh Sidey, da revista Time, no mesmo junho de 1961: “Nunca conheci um homem igual a esse. Falei que uma explosão nuclear podia matar 70 milhões de pessoas em dez minutos, e ele só ficou olhando para mim, como se dissesse: “E daí?”. Tive a impressão de que ele não se importaria nem um pouco se isso acontecesse.” O que ocorreria em seguida? A guerra? Não, e aí temos a parte III do livro, O Confronto, que trata basicamente da barreira construída pelos alemães orientais a mando dos soviéticos, e que se tornaria o futuro e odiado Muro de Berlim. Tudo feito de surpresa, na noite de sábado 12 de agosto de 1961 para o domingo 13, com o prosseguimento das obras de fechamento da cidade. Berlim, que já era dividida, agora teria sua fronteira com o lado ocidental cercada por 150 quilômetros de arame farpado o que impediria a fuga de seus habitantes para a liberdade. Blocos de concreto e argamassa só foram usados alguns dias depois: eram os comunistas transformando a metafórica Cortina de Ferro numa coisa real.
O fechamento da Alemanha Oriental foi o resultado de um complexo planejamento envolvendo soviéticos e alemães orientais, que conseguiram realizar todas as inúmeras manobras para tal sem que americanos, franceses e britânicos se dessem conta. Milhares de soldados do lado oriental, muito bem armados, estavam prontos para revidar um ataque do Ocidente caso isso ocorresse. Também para impedir que a fuga de seus cidadãos continuasse a debilitar a economia da Alemanha Oriental e, consequentemente, o prestigio do premiê russo. Kempe descreve o planejamento e a execução da tomada de Berlim em muitas páginas e elas constituem um dos trechos mais interessantes de seu livro. Como reagiu Kennedy ao golpe de Khruschov? Com certo alívio, como ele se expressou em 13 de agosto de 1961: “Por que Khruschov construiria um muro se realmente pretendesse se apoderar de Berlim Ocidental? […] Essa é a solução que ele encontrou para seu problema. Não é uma solução muito boa, mas um muro é bem melhor que uma guerra.” Kennedy parecia mais empenhado em preservar a liberdade de Berlim Ocidental e nem tanto assim em batalhar pela reunificação da Alemanha ou mesmo com a condição dos berlinenses orientais sob o jugo soviético; preocupava-se em impedir o avanço do comunismo na Ásia, África e América Latina. Moscou que ficasse com o leste europeu...
As tensões entre o Ocidente e os soviéticos permaneciam altas, claro; muitos habitantes de Berlim Oriental continuavam tentando fugir dali durante e depois da construção do muro e muitos foram presos ou morreram na fuga: os guardas do lado oriental tinham ordem de atirar nos fugitivos para matar. Kempe ilustra esses fatos com vários casos de jovens e adultos com seus expedientes bem e mal-sucedidos para escapar do socialismo. Enquanto isso, mas já em setembro de 1961, Kennedy recebia uma carta do premiê russo, primeira da correspondência confidencial que trocaram através de agentes secretos de ambos os lados, destacada num capítulo que Kempe chama de “Pôquer Nuclear”, em que o russo escreve: “Em certo sentido, há aqui uma analogia — gosto dessa comparação — com a Arca de Noé, na qual os “puros” e os “impuros” encontraram refúgio. Mas, independente de quem se inclui entre os “puros” e quem é considerado “impuro”, todos estão igualmente interessados numa coisa: que a Arca siga viagem sem problemas.” Isto é, que russos e americanos, mesmo com ideias e ideais tão opostos, continuassem evitando uma guerra nuclear. Kennedy demorou duas semanas para enviar sua resposta, mas ela foi mais ou menos nos mesmos termos cordiais usados pelo russo.
Porém isso não significava que tensões, desconfianças e suspeitas de ambos os lados tivessem desaparecido ou diminuído, jamais. Um incidente em 22 de outubro de 1961 quase levou a um sério confronto entre soldados americanos e alemães no chamado Checkpoint Charlie, posto militar na divisa entre Berlim Ocidental e Oriental. Ele servia como um ponto de controle para registrar a passagem de membros das forças aliadas e diplomatas estrangeiros entre as duas Alemanhas. Moscou não exigia que essas pessoas se identificassem com documentos, mas nesse dia os guardas alemães exigiram de um diplomata americano e esposa, que iam a Berlim Oriental ver uma apresentação teatral, suas identidades. Eles se negaram a apresentá-las e aí começou uma enorme confusão que acabou até levando tanques militares americanos a invadir o espaço soviético. Kempe inicia a narração dessa história dizendo que a noite que desencadearia a crise decisiva do ano havia começado de forma inocente, quer dizer, com a ida do casal a um teatro na parte oriental de Berlim. E que quase terminara num grave conflito. Na segunda-feira, 23, em represália, o governo da Alemanha Oriental publicou um decreto oficial estabelecendo que, dali em diante, todos os estrangeiros — exceto militares aliados fardados — teriam de mostrar sua identidade para entrar na Berlim “democrática”. Sim, o lado comunista e repressor do país se chamava República Democrática Alemã, a famosa RDA.
Em 27 de outubro de 1961, no mesmo Checkpoint Charlie, ocorreu outro incidente que causou arrepios em Washington porque, dependendo da reação dos americanos ou dos soviéticos e dos tanques de ambas as potências estacionados nas proximidades, poderia ter ali o início de outra guerra, talvez nuclear. Depois de algumas manobras e treinamentos de soldados e tanques americanos em dias anteriores, que até simularam a derrubada de um muro construído especialmente para esse treinamento, os soviéticos concluíram que talvez eles estivessem se preparando para uma invasão de Berlim Oriental. Então, no entardecer de 27 de outubro, tanques sem identificação (depois verificou-se que era russos) ocupados por homens vestidos com uniformes pretos também sem identificação (eram soldados russos, claro) estacionaram no lado oriental nas proximidades do ponto de checagem, causando tensão no americanos. Mas depois eles perceberam o posicionamento ilógico dos tanques – dois-três-dois –, que impediria que os da retaguarda disparassem contra os tanques americanos posicionados no lado ocidental. A noite foi de vigilância, mas sem sobressaltos. Na manhã seguinte os tanques soviéticos deixaram o Checkpoint Charlie e logo depois os tanques americanos também se retiraram. Fora apenas uma demonstração de força e presença da URSS, mas a inépcia (ou valentia, depende) de um jovem militar americano, como relata Kempe, poderia ter causado um grande estrago, o início de uma devastadora guerra ali, como se disse antes.
Kempe finaliza o relato sobre o ano de 1961 em Berlim destacando que os incidentes ocorridos no Checkpoint Charlie e cercanias foram os mais perigosos da Guerra Fria, que aqui resumi imensamente; eles ocupam várias páginas do livro, algumas das melhores. Ele conclui afirmando que os desdobramentos do que aconteceu na cidade alemã dividida naquele ano seriam dramáticos e duradouros. Abalariam o mundo um ano mais tarde em Cuba (na chamada Crise dos Mísseis) — e seriam determinantes nas três décadas seguintes. O Muro de Berlim foi derrubado em 9 de novembro de 1989. A reunificação da Alemanha ocorreu em 3 de outubro de 1990. Em 26 de dezembro de 1991 deu-se a dissolução da União Soviética.