Lucky Luke - O Juiz (HQ) - de Morris
Os rapsodos, a inspirá-los as musas helênicas, cantaram as origens dos deuses, e as suas peripécias, façanhas, trabalhos,batalhas, guerras, e as dos semideuses e as dos heróis. Os trovadores lusitanos, a inspirá-los as musas ibéricas, cantaram as conquistas dos reis, e os seus amores, os seus maldizeres, os seus escárnios. Na ilha da Britânia, os bardos cantaram aventuras, hoje lendárias, do Rei Arthur e dos seus nobres Cavaleiros da Távola Redonda, e os menestréis as de rebeldes e outros personagens hoje queridos de todos. Em terras do outro lado do Atlântico, em uma era mais próxima de nós, num tempo em que a civilização transitava para uma era, ainda embrionária, industrial, que iria matar, nos anos que se lhe seguiriam, nos homens a poesia e a bravura, os poetas cantaram as façanhas dos heróis das terras novas, Buffalo Bill, Davy Crockett, Daniel Boone, Wild Bill Hicock, heróis lendários do panteão dos povos que marcharam para o oeste. Negligenciaram, todavia, a biografia de Lucky Luke e a de seu antagonista, Roy Bean, personagens que se envolveram em embates homéricos, embates que os cantou o talentoso Morris, a inspirarem-lo, tardiamente, após a morte dos lendários mitos americanos, as musas do Novo Mundo, que o presentearam com o talento dos rapsodos, dos trovadores, dos bardos e dos menestréis, e dos Leonardos e dos Michelângelos, talentos que, unidos em um só homem, permitiram que ele, agraciado com eles, a empunhar a pena, pusesse em papel os capítulos da história fabulosa que homens extraordinários cantaram, ao oeste do Rio Pecos, na cidade de Langtry, recanto aprazível, onde, ao contrário do que diz a história, há lei, a lei do juiz Roy Bean, que exerceu, num saloon-tribunal, com mãos-de-ferro, e errático, e reprovável, senso de justiça, a justiça. E nas mãos de tal juiz o destino jogou o esbelto e gracioso herói americano, Lucky Luke, o homem que dispara mais rápido que a sua sombra.
No canto que abre o épico, vemos o heróico Lucky Luke a ser incumbido, pelo mr. Smith, de conduzir, de Austin, Texas, até Silvercity, Novo México, a secundá-lo o chiquérrimo matuto La Chique, que lhe conta a história do juiz Roy Bean, manada de gado que trazia no lombo a marca do Rancho da Barra Dupla. Mal sabia o previdente herói que a viagem ele não a empreenderia sem contratempos, que o iriam pôr na frente da mira de rifles, nas garras de um urso e no banco dos réus.
Não nos antecipemos aos fatos. Estamos, ainda, a falar do princípio da fantástica aventura de um dos maiores heróis do Velho Oeste.
Assim que atravessa, a conduzir o gado do Rancho da Barra Dupla, a ponte sobre o Rio Pecos, Lucky Luke depara-se com uma estaca - a encimá-la um abutre robusto, agourento, que, a viver naquelas terras sáfaras, jamais conheceu a fome - fincada no solo árido, e lê os dízeres inscritos nas duas placas nela pregadas: na superior, maior: "Estrangeiro, chegaste a Langtry. População, hoje", e, na menor, inferior: "Quarta-feira, 12 - 225 habitantes." Estão Lucky Luke e La Chique a cinco quilômetros da área urbana. E de tal distância, o juiz Roy Bean, dono de um faro sobrenatural, sente o odor que exalam os corpos dos bois e das vacas, e vai ter uma palestra com Lucky Luke, palestra cujo prólogo é um disparo com um rifle, que desperta, de imediato, o adormecido herói americano. É tão rápida, e fulminante, e infalível, o senso de justiça do afamado juiz, que ele, dispensando o forasteiro de falar qualquer palavra em sua defesa, assim abreviando o julgamento, acusa-o de haver roubado o gado, e o sentencia a ser, acorretado a uma árvore, perseguido por um urso, o terrível urso Joe, animal ferino, de caninos grandes e pontudos, de corpanzil monstruosamente respeitável, petrificante, e de uma ferocidade ímpar, também ele acorrentado à árvore. Durante este evento, digno de ser registrado pelo brilhante artista que é Morris, os cidadãos que apostam na captura de Lucky Luke pelo urso são condenados, pelo juiz Roy Bean, que, sempre de olhos abertos, e alerta às injustiças e aos crimes que ocorrem em Langtry, confisca-lhes, subserviente ao Código Civil, o dinheiro das apostas.
E agenda-se o processo cujo réu é Lucky Luke - e ao tribunal acorrem multidões, de todos os cantos, para assistirem ao imperdível espetáculo. Entram em cena outros personagens, sem os quais o poema não teria as suas riqueza narrativa e fidelidade aos fatos: o mexicano Jacinto; o juiz Bad Ticket; o banqueiro J. P. Hogan; o professor Mr. Williams; o agente funerário a quem chamam Gato-Pingado; e, outros, que, de menor expressão, são imprescindíveis para a narração fiel aos fatos que se lê nos hexâmetros datílicos dos cantos da extraordinária aventura que os contemporâneos de Lucky Luke que viveram a oeste do Rio Pecos assistiram e que o grandioso Morris, após centúrias a se debruçar sobre documentos e livros históricos obscuros, registrou, desinteressadamente, em livro monumental.
Não podemos sonegar ao atilado, exigente, leitor, algumas notícias acerca da aventura do nosso herói Lucky Luke, aventura repleta de reviravoltas singulares e curiosidades antropológicas.
Lucky Luke escapa, rifle em punho, do saloon-tribunal. E ao saloon-tribunal regressa, e rende o juiz, pondo-o à mira de um revólver. Atingido, na cabeça, pelo Código Civil, instrumento pesadíssimo que o juiz Roy Bean arremessara-lhe, perde os sentidos, e, desacordado, cai. É preso. Com ajuda do inestimável Jacinto, foge. E recorre ao juiz Bad Ticket, e ajuda-o a construir, diante do saloon-tribunal do juiz Roy Bean, um tribunal. Fica entre o fogo cruzado entre os juízes Roy Bean e Bad Ticket. Para dirimir as pendências, propõe um duelo entre os dois juízes: é o duelo um jogo de poker, num ringue armado sobre o rio: compromete-se o perdedor a ir-se embora, e para sempre, de Langtry. Bad Ticket, o novo juiz de Langtry, condena Lucky Luke à morte por enforcamento. O urso Joe salva Lucky Luke, que se alia ao juiz deposto Roy Bean. O juiz Bad Ticket prende Lucky Luke e Roy Bean num alçapão. Lucky Luke e Roy Bean são dados mortos por afogamento. Fazem-se de fantasma. Enfim, após estas e inúmeras outras façanhas, o nosso heróico Lucky Luke, valente pistoleiro do Velho Oeste, agraciado, pela natureza, com bravura indômita, chega ao fim de seu périplo pela cidade, cujos habitantes vivem, agora, sob a guarda de um juiz justo e correto. Está Lucky Luke satisfeito com o epílogo da sua heróica aventura, um épico dos tempos modernos.
Leu o leitor, e atentamente, e interessadamente, sabemos, todas as palavras, que estão razoavelmente dispostas, e em boa quantidade, no parágrafo que antecede a este, um resumo, diremos, das peripécias, das adversidades, das reviravoltas que o mundo ofereceu ao nosso apolíneo herói, que soube, no uso de sua destreza no manejo do revólver e do rifle e das lucubrações intelectuais, punir os homens injustos em benefício dos homens injustiçados.
É a aventura O Juiz, narrada e ilustrada pelo preferido das musas americanas, de Lucky Luke, um episódio, e dos mais emblemáticos, da biografia de tão louvável herói, homem de inegáveis coragem e destemor, homem que jamais recua diante do perigo, homem abnegado, defensor da justiça e da liberdade, disposto a, sempre que as circunstâncias lhe exigiram-lhe, aliar-se a um de seus inimigos contra outro deles, conservando, fria, e pensativa, a cabeça, tal qual um aluno de Zenão, a cerebrar suas sofisticadas e sutis artimanhas, revelando ao mundo possuir o sangue do criador do Cavalo de Tróia.
É "O Juiz", do maravilhoso Morris, um monumento literário universal, uma homenagem ao homem americano. E é o herói o esbelto e apolíneo Lucky Luke, por antononásia O Homem Que Dispara Mais Rápido Que A Sua Sombra, um emblema do Velho Oeste.
Tem Lucky Luke seu perfil na galeira dos heróis, e está, à mesa, tal qual Sócrates, após beber da cicuta que lhe ofereceram, com seus iguais, numa palestra animada, a ter um descontraído dedo-de-prosa com os seus pares Robin Hood, Robinson Crusoé, Ben-Hur, e tantas outras lendas que os literatos imortalizaram.