O enfermo (Várias Histórias) - de Machado de Assis
Neste conto, mergulha o pai da Academia Brasileira na confusão moral de Procópio José Gomes Valadares, seu herói. Após a morte do coronel Felisberto, que, na altura de seus sessenta anos, a flagelá-lo várias moléstias, dentre elas reumatismo e aneurisma, homem rabugento, e mau, que vivia a desancar os enfermeiros por ele contratado, Procópio, o último deles, o que lhe testemunhara o último suspiro, confuso, sem saber se ele, para usar uma expressão popular, que não é elegante, e que acredito imprópria no momento, batera as botas, quis reanimá-lo.
Está a narração do drama de Procópio em primeira pessoa - e é Procópio que está a narrá-lo para um personagem cujo nome o autor ao leitor não revela.
Durante os anos de convívio com Procópio o coronel Felisberto destrata-o, desanca-o, maltrata-o, ofende-o, arremessa-lhe tigelas, dá-lhe bengaladas no lombo, a ponto de, de tanto maltratá-lo, inspirar-lhe o desejo, e em não apenas uma ocasião, de ir-se embora; o desditoso, infortunado Procópio, todavia, conserva-se, na casa do coronel Felisberto, à solicitação deste e do padre de Niterói e do vigário, para cuidar dele.
Machado de Assis insere dois dados que inspiram ao leitor a antevisão do desenrolar da história e o seu desenlace: o coronel não tem herdeiros; e, após três meses de convivência com Procópio, deixa testamento.
O leitor que se precipita ao antecipar em imaginação o encerramento da trama surpreender-se-á com a cena da morte do coronel Felisberto, tragédia inesperada que se dá, num acesso de raiva dele, durante um embate físico entre ele e Procópio. E é esta cena que dá o tema do restante do conto. Procópio envolve-se em elucubrações, que o perseguem durante dias, mesmo após ele ir-se ao Rio de Janeiro, distante da vila onde vivera com o coronel Felisberto. Atormenta-se. Teme que lhe imputem o assassinato. Ameniza as censuras que se fazia ao ver no caso uma coincidência fortuíta entre a sua ação e a morte do coronel: o finado, independentemente do episódio que o levara desta para a melhor, tinha poucos dias de vida, estava com um pé na cova; portanto, ele, Procópio, nenhum papel tivera na morte dele. Culpa-se, e desculpa-se, Procópio. Esforça-se para não se dar como culpado pelo crime. Perturbam-no alucinações. E revela-se o teor do testamento do coronel Felisberto: É Procópio seu herdeiro universal. E mais razões há para ele se preocupar. Dias antes, desesperado, dera esmolas aos pedintes, espórtula à Igreja, pedira missa por intenção do finado, para desengano de consciência, quase subjugado pela culpa que carregava, pelos torvelinhos de pensamentos, que se lhe entrechocavam no espírito a ponto de lhe darem fim ao equilíbrio moral e roubarem-lo à sanidade. E para atenuar sua culpa elogia o coronel aos que o ouviam, o barbeiro, o boticário, o escrivão. E regozija-se com os relatos que do finado lhe dão, todos a apontá-lo como um tipo reles, execrável. Enfim, despede-se Procópio do destinatário de seu testemunho, pedindo-lhe, morrendo-lhe antes, um epitáfio que contenha uma emenda ao Sermão da Montanha.