Adão e Eva (Várias Histórias) - de Machado de Assis
Reunido, com outros quinze contos, no volume Várias Histórias, reforça este conto uma idéia, inspirada na leitura deste volume de contos, que me ocupa, desde que me pus a ler, melhor, reler, os contos do Bruxo do Cosme Velho: é Machado de Assis um escritor criativo, de fértil imaginação. Ao contrário dos escritores aos quais os críticos literários atribuem imaginação fértil e criatividade ímpar, escritores de narrativas de aventuras rocambolescas, de façanhas heróicas, de comédias, e de tragicomédias, que agradam os leitores, enfeitiçados pelo entrecho recheado de tramas instigantes, maquinações diabólicas, intrigas complexas, o criador do Simão Bacamarte, de temperamento contido, cerebrino, elabora tramas comuns, e não originais, dir-se-ia, e a elas dá um toque único, aqui, sim, original, todo seu, inconfundível. O estilo machadiano de fazer literatura não permite que o leitor se empolgue com a leitura, que ele dê asas à imaginação: o estilo do Bruxo exige leitor atento, perspicaz, sutil, irônico. Se o leitor desvia, por um segundo que seja, da leitura, sem que a interrompa, a atenção, e perde-se, neste um segundo, em devaneios - é infalível -, de si escapa o fio da meada. Ao perceber que sua mente, durante a leitura - que leitura, na verdade, não foi -, escapuliu, contra a sua vontade, por um buraco-de-minhoca, para outra dimensão, o leitor, sua mente de regresso à nossa dimensão, se movido pelo desejo sincero de entender, saber o que lê, obriga-se, para que possa se reapossar do fio da meada perdida, a reler as linhas que, à primeira leitura empreendida, estiveram além do alcance de sua consciência. É este o fardo que os leitores do pai do Quincas Borba têm de carregar. E só os fortes sobrevivem ao final da jornada.
Neste Adão e Eva, estão reunidos, à mesa, na casa de D. Leonor, esta senhora, dona de engenho, e seus convidados, sendo os principais, dois, Frei Bento, carmelita, e Sr. Veloso, juiz-de-fora, este, espirituoso, bem-humorado. A anfitriã oferece aos seus convidados ilustres doces, que o Sr. Veloso degusta, cobiçoso deles. E é este senhor o centro das atenções. Ele principia a narração de uma história, cujos protagonistas são Adão e Eva, e com ela prende a atenção dos convivas. É a história, declara o Sr. Veloso, apócrifa. Para surpresa de seus amigos, diz ele que foi o Diabo quem criou o mundo, e não Deus, que se limitou a corrigir-lhe a obra. Na obra do Tinhoso, o homem e a mulher não tinham almas; Deus, então, não concordando com o que viu, presenteou-os com alma e bons sentimentos. E enfureceu-se o Diabo com tal ousadia; não podendo, no entanto, enfrentar Deus, mandou a serpente que fosse ao Eden, e seduzisse Adão e Eva, e, com voz melífluas, palavras cativantes, persuadisse-os a comer do fruto do Bem e do Mal, que a eles, por decisão divina, estava inacessível. A serpente, que odiava o casal de humanos, atendendo, prontamente, à ordem diabólica do Tinhoso, foi, prelibando de prazer imensurável, até Eva, e falou-lhe, insinuante, do fruto proibido, e profetizou-lhe, se ela o ingerisse, um futuro grandioso, mas ela resistiu à tentação. Aqui, vê-se, o caso não corresponde ao relato bíblico. E o Sr. Veloso não encerra a história. Dando-lhe sequência, informa que Deus envia ao paraíso o arcanjo Gabriel, incumbindo-o de conduzir o casal humano ao céu, para gozarem Adão e Eva da bem-aventurança eterna. E encerra seu conto o Sr. Veloso. Mas o conto que Machado de Assis conta ainda não se encerrou; para conhecer-lhe o desfecho, tem o leitor de ler mais algumas linhas; e se não as ler com a atenção e a sagacidade de espírito que o Bruxo do Cosme Velho lhe exige, não irá usufruir do prazer espiritual, intelectual, que as derradeiras palavras do Sr. Veloso oferecem.