A arte de perder - Michael Sledge
Michael Sledge - A arte de perder, São Paulo, editora Leya, 2011
A Arte de Perder é inspirado na história de duas mulheres geniais e geniosas, quase sempre dispostas a pensar e a agir de modo apaixonado, conturbado, desenfreado. Uma, a americana Elizabeth Bishop (1911-1979), a outra, a brasileira Lota de Macedo Soares (1910-1967), conhecidas personagens cariocas das décadas de 1950 e 1960.
A primeira, premiada com o Pulitzer de poesia em 1956, e a segunda, responsável pela urbanização e construção do Parque do Flamengo (o maior aterro urbano do mundo) durante o governo de Carlos Lacerda (1960 a 1965). Elas duas, juntamente com Lacerda, Getúlio Vargas, João Goulart, Carlos Niemeyer, Sérgio Bernardes, Burle Marx, Lina Bo Bardi, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Robert Lowell, Mary McCarthy e muitos outros, desfilam pelas páginas desse livro de leitura tão agradável quanto interessante.
Durante a escrita do livro Sledge se valeu, em grande parte, de frases das cartas, diários e rascunhos de Elizabeth Bishop, mas também recorreu a uma série de livros e documentos sobre sua vida e ainda contou com a colaboração de diversos americanos e brasileiros para levar seu projeto ao final. Até mesmo se valeu de outro conhecido livro sobre Elizabeth e Lota, Flores Raras e Banalíssimas, da brasileira Carmen Oliveira, que foi transformado em filme por Bruno Barreto (e que parece ser muito bom; recebeu muitos elogios em diversos festivais internacionais de cinema).
A edição americana do livro de Sledge se chama The More I Owe You (algo assim como O Muito Que Lhe Devo), título que é parte de um verso de Camões (“...O dar-vos quanto tenho e quanto posso, / Que quanto mais vos pago, mais vos devo.”), e que está presente na dedicatória que Bishop fez a Lota em seu livro de poemas editado em 1965, Questions of Travel. Bishop reconhece o quanto Lota foi especial em sua vida para que ela se tornasse uma poetisa conhecida e premiada.
Embora contenha apenas três poemas de Bishop, há muita poesia em A Arte de Perder. Pois Sledge, sem imitá-la, e do mesmo modo que agem outros autores quando tentam aproximar mais ainda seus personagens dos leitores, é capaz, com sua prosa caprichada, de nos trazer imagens que também podem ser capturadas ou encontradas nos poemas de Bishop. Desse modo, ele é capaz de nos transportar para aqueles dias distantes e por lugares tão diferentes quanto Nova York ou Ouro Preto, sempre mantendo nosso interesse elevado e cativando nosso espírito com observações agudas sobre o mundo das artes e igualmente sobre a sociedade brasileira de então.
Dentre tantos relatos emocionantes que encontramos aqui, a poesia em forma de prosa nada complicada de Sledge torna bastante especial o episódio da visita que a poetisa fez ao Amazonas, região que povoava sua mente havia muito tempo, e, num artigo para a revista Bravo, em 2011, o próprio autor diz: “Como Elizabeth Bishop, eu havia chegado ao Brasil como turista. E, como ela, descobri um país intoxicante em sua beleza, na generosidade de seu povo, na linda e louca poesia que permeia sua vida diária. Elizabeth Bishop abriu a porta para o Brasil e eu entrei.”
Mas isso não quer dizer que Sledge, melhor, que Elizabeth ou Lota estivessem ocupadas apenas com seu romance cheio de altos e baixos e idas e vindas, não prestassem atenção nas mazelas brasileiras todas. Sobre a construção de Brasília, que endividou o país, por exemplo, alguém pergunta a certa altura, “Por que (...) trazer os melhores arquitetos, toneladas de mármore de Carrara, e construir um reino de Oz, enquanto muitos continuam sem as necessidades básicas de sobrevivência?” É, a coisa não mudou tanto assim de lá para cá, pois agora temos alguns dos estádios de futebol mais modernos do mundo (e com custos absurdos) mas permanecemos com sérios problemas de infraestrutura urbana, saúde, educação, segurança pública etc.
E a calorenta e barulhenta cidade do Rio de Janeiro, já com tantos problemas naquele tempo (especialmente com tantas favelas penduradas nos morros, notava a poetisa), seria de fato a tal cidade maravilhosa, cantada em verso e prosa? Sobre o Rio à noite, a umas tantas páginas, Elizabeth reflete: “Uma cidade maravilhosa, ou, pelo menos, um cenário maravilhoso para uma cidade.”
De todo modo, a sua maneira Bishop e Lota amavam o Rio, tanto quanto amavam Nova York. Então, para finalizar, em seguida vai A Arte de Perder (ou The Art, em inglês; aqui em tradução de Paulo Henriques Britto), talvez o poema mais conhecido de Elizabeth Bishop, que não se encontra no livro, infelizmente. Combinando política, história, romance, uma apreciável carga de poesia e de ironia, também outros ingredientes dos trópicos e das zonas temperadas, A Arte de Perder é um livro bastante saboroso, de leitura imperdível mesmo para quem lê muito pouca poesia, meu caso.
A arte de perder - Elizabeth Bishop
A arte de perder não é nenhum mistério;
Tantas coisas contêm em si o acidente
De perdê-las, que perder não é nada sério.
Perca um pouquinho a cada dia. Aceite, austero,
A chave perdida, a hora gasta bestamente.
A arte de perder não é nenhum mistério.
Depois perca mais rápido, com mais critério:
Lugares, nomes, a escala subsequente
Da viagem não feita. Nada disso é sério.
Perdi o relógio de mamãe. Ah! E nem quero
Lembrar a perda de três casas excelentes.
A arte de perder não é nenhum mistério.
Perdi duas cidades lindas. E um império
Que era meu, dois rios, e mais um continente.
Tenho saudade deles. Mas não é nada sério.
- Mesmo perder você (a voz, o riso etéreo
que eu amo) não muda nada. Pois é evidente
que a arte de perder não chega a ser mistério
por muito que pareça (Escreve!) muito sério.