A utopia perverteu-se até dar pena
O sonho do socialismo soviético, principiado em 1917 na Revolução Bolchevique russa, pervertera-se tanto dos seus desígnios iniciais que chegara a provocar compaixão nos espectadores, estejam eles direta ou indiretamente envolvidos na saga de dor e sofrimento que se assentara sobre a esperança da igualdade entre os homens. Essa é a grande conclusão histórica a que chega o romancista cubano Leonardo Padura, autor do portentoso “O homem que amava os cachorros”, publicado pela Boitempo Editorial em 2013. O escopo do livro é simplesmente espetacular. Vazado numa maestria narrativa pujante, Padura tem como cenário principal os doze anos que antecederam ao assassinato do revolucionário Liev Davidovitch Trotski, ocorrido no exílio em Coyoacán, no México, em 1940.
Encomendada por Josef Stálin, a eliminação de Trotski fora a representação máxima do arbítrio do governante obcecado por uma vingança pessoal contra o antigo rival na liderança do Partido Comunista, não tendo qualquer relação com a justificativa de sobrevivência da extinta União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS).
Ao mesmo tempo em que nos conduz magistralmente em meio aos cenários do exílio de Trotski na Ucrânia, Turquia, França, Noruega e México, Padura intercala o seu poderoso conhecimento da documentação histórica com duas narrativas fundamentais: a primeira refere-se ao assassino de Trotski, o espanhol Ramón Mercader del Río; a segunda, tendo como pano de fundo as experiências pessoais de um escritor cubano frustrado, Iván. Recrutado como agente soviético nas fileiras da resistência comunista ao avanço franquista na Espanha, durante a chamada Guerra Civil Espanhola, Ramón Mercader era um jovem completamente entregue à proposta da revolução socialista, a qual emanava de maneira fanática por todos os poros do seu corpo. Não havia espaço psicológico em Mercader para dúvidas ou hesitações que seriam normais em qualquer um, mas tão somente a estreiteza de pensamento dada apenas aos executores obstinados que pretendem concluir uma missão histórica.
As longas conversas entre Mercader e o seu tutor iluminam dezenas de páginas primorosas do romance, apontando traços seguros da perspectiva stalinista acerca da presença de Trotski no mundo. O exilado era entendido como uma ameaça real à existência da URSS, sendo acusado por Moscou, inclusive, de tornar-se um títere nas mãos de Adolph Hitler a fim de promover rebeliões internas que derrubariam futuramente o regime soviético. Não importa a que custo, era preciso que o exilado fosse eliminado antes de reorganizar uma oposição consistente ao regime de Stálin.
Por outro lado, temos a história pessoal de Iván, atormentado pelas restrições políticas, econômicas e culturais vigentes na ilha de Cuba, já dominada por Fidel Castro. Os sonhos de Iván vagueavam pela esperança de um dia tornar-se um escritor importante, mas logo viu que os fios da política cubana limitariam deveras a sua liberdade criativa. Removido para trabalhar em um ponto isolado da ilha por causa de um conto no qual narrava a desilusão de um militante comunista que se suicidara para não ter que abandonar as fileiras revolucionárias, Iván logo se desgostou da literatura, reconfortando-se na humilde posição de revisor de textos veterinários em uma revista periódica. Tudo muda quando Iván conhece um estranho homem de meia idade que sempre caminhava na praia acompanhado por dois cachorros borzóis. Aos poucos, o “homem que amava os cachorros” – apresentado como Jaime López – reconhece no frustrado Iván o destinatário ideal para contar uma história horripilante: a história de como Ramón Mercader se preparara para matar o dissidente comunista Leon Trotski, a mando do líder máximo da União Soviética.
Aliás, Stálin não aparece em nenhum momento das quinhentas e oitenta e nove páginas do romance de Padura, embora sintamos a sua presença mística em praticamente toda a narrativa. A impressão é a de que Stálin deixara de ser um homem de carne e osso para se transmutar em uma máquina impessoal de engenho político, capaz de antecipar todos os passos dos seus inimigos – dentre os quais Trotski era o maior – planejando não somente a desgraça política de cada um, mas também as devidas eliminações física e moral que restavam aos “inimigos” da Revolução de Outubro de 1917. Aspecto imprescindível no relato de Padura, é muito instigante notar como Stálin encontrava uma maneira para fuzilar todos os antigos correligionários, os quais eram submetidos a tribunais teatrais após longas sessões de tortura em que “confessavam” ações de traição e contrarrevolução à pátria soviética.
O georgiano passa a ser interpretado como uma espécie de “Grande Irmão” infalível, competente em sondar todos os movimentos do profeta exilado. Após o início da Segunda Guerra, em 1939, Stálin acelerou os preparativos para a morte de Trotski, temendo que o velho revolucionário fosse utilizado como instrumento alemão para destronar a única revolução marxista exitosa no mundo. Acostumado às versões oficiais da Editora “Progresso”, as únicas a circularem no meio acadêmico cubano, Iván se deixa impactar pela macrabra história de obediência a um ideal maior contada por Jaime López, entendendo-a como definidora para a vida de tanta gente ao longo do século XX. Aos poucos, tentara completar aquela narrativa de maneira mais holística, procurando sorrateiramente livros que trouxessem a visão trotskista dos acontecimentos. Vivendo sob péssimas condições na maior parte das vezes, Trotski enfrentara um rol de calamidades familiares em seus últimos doze anos de vida. Tivera de suportar a dor lancinante de ver os filhos assassinados à distância por agentes de Stálin, acompanhou a deserção de antigos companheiros de luta revolucionária que não ousaram enfrentar Moscou em uma conjuntura de ascensão do fascismo na Europa, padeceu pela falta de recursos que limitaram a capacidade de trabalho e de organização. Curiosamente, conseguiu intuir por que caminho tomava todas as manobras de Stálin em direção à sua destruição, inclusive a de perceber que o estranho Jacson Frank (Ramón Mercader disfarçado) seria um agente preparado para dar-lhe cabo da existência. Sendo assim, por que não conseguiu resistir? Padura responde: Trotski estava sozinho. Quase tudo lhe havia sido tirado. Subestimara o poder de Stálin desde o início por considerar-lhe medíocre demais dentro da estrutura do Partido Comunista. Um erro de avaliação que seria fatal nos dias vindouros.
Entrelaçando as narrativas de Iván, Trotski e Mercader, “O homem que amava os cachorros” coloca-se como uma reluzente jóia da literatura latino-americana, sendo recomendável para todos aqueles que nutrem interesse em ampliar os seus conhecimentos acerca de um dos episódios históricos mais curiosos do século XX. Leonardo Padura traça alguns apontamentos que servem como ensinamento moral a tudo isso – prefiro que os leitores descubram quais são na medida em que devorarem as páginas do romance - , observando também que o autoritarismo revolucionário que tirara o czarismo do poder na Rússia acabara se tornando um método de governo para a perseguição de todos aqueles que pudessem fazer sombra ao dirigente que se reconhecia como herdeiro do espólio de Vladimir Lênin. Os sonhos de democracia e igualdade social acabaram se degringolando durante o governo de um homem que precisava manter a todos sob controle debaixo do tacão do medo.
A história do narrador Iván poderia bem ser considerada como uma espécie de arquétipo da trajetória do socialismo soviético: um projeto esperançoso de talento que se deixara amargar pelo medo que fez do silêncio consentido a única possibilidade de sobrevivência. Se Leon Trotski tivesse se consagrado como liderança da URSS, as coisas teriam sido diferentes? Possivelmente, não. Em certo sentido, o velho exilado morto a golpe de picareta tornara-se a principal vítima da máquina de terror revolucionário que ajudara a construir.
Resenha de Padura, Leonardo. O homem que amava os cachorros. São Paulo: Boitempo, 2013.